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A liberdade criativa e a experimentação da animação portuguesa

O cinema de animação português está de parabéns. Isso foi notório nos filmes que estiveram a concurso na 23ª edição do Monstra, Festival de Animação de Lisboa. Na sessão da competição de homenagem ao grande mentor da animação nacional Vasco Granja, exibiram-se obras produzidas em 2023 e 2024. O destaque: a experimentação e ousadia criativas de todos eles. Vale a pena falar sobre cada um deles. “Páscoa”, retrata uma viagem ao Alentejo nessa altura festiva. O traço do desenho é facilmente identificável como pertencente ao ilustrador André Ruivo. Poucos elementos contam uma história simples e divertida deste quotidiano de dois irmãos e dos pais, que culmina com a família perdida na paisagem ao Sul. “Sombras da Manhã”, de Rita Cruchinho Neves, transporta-nos para um ambiente gótico, em que a voz do narrador deixa a pairar várias questões existenciais. As imagens sucedem-se; viajamos com esse protagonista de uma forma circular. 

Dos testemunhos de vida ao mundo enigmático no cosmos: tudo cabe na animação

São arrojados os quatro minutos de “Motus”, de Nelson Fernandes. O autor propôs-se trabalhar sobre uma chapa de metal, usando etanol como matéria-prima. Um corpo resultante deste processo aparece e desaparece. Podemos afirmar que vislumbramos espectros, resultantes desta experiência animada. “Quase me lembro” (Dimitri Mihajlovic e Miguel Lima) cria o ambiente de uma casa em que uma neta tenta perceber o que se passa com o avó. Memórias de um outro lugar (será a Guerra Colonial, será África), memórias da infância da narradora. As imagens criam o mistério, no qual tacteamos a ansiedade dessa busca por um caminho que clarifique o passado. 

Em “O Estado de Alma”, predomina a distorção do mundo, a partir do olhar da de Alma. Alma vê-se a si de forma distorcida: o seu pescoço é torto, a sua casa e respectivos objectos inclinam-se. Tudo é difícil para esta mulher solitária. Alma vai perceber, depois do confronto com essas auto-imagens, que os que a rodeiam também têm as suas peculiaridades. Sara Naves, a realizadora, trabalha a matéria de que são feitos os sentimentos de Alma: tudo se desmorona para depois tudo se aquietar.

“Sopa Fria” é um testemunho de uma mulher. Talvez por isso, a autora Marta Monteiro tenha recorrido a imagem real (fotografias) como pano de fundo para o traço que vai assumindo a contar esta história de violência doméstica. É o caminho de uma vida que tenta, ao longo de anos, sair de um ambiente familiar abusivo. Até que a liberdade acontece, e esta mãe, esposa e mulher consegue finalmente ser livre e seguir outro destino. 

“A Rapariga dos Olhos Grandes e o Rapaz das Pernas Compridas”, de Marta Hespanha, conta, em animação tradicional e stop-motion, a história de duas pessoas e das encruzilhadas por que passam separadas até se juntarem. É uma obra de artesania (e não o são todos os filmes de animação?), com cenários, concepção plástica de adereços e guarda-roupa reveladores de um detalhado mundo onírico e nostálgico. 

A distribuição e a exibição dos filmes

Perante tanta diversidade, temos ainda a história do processo de escrita, em “Olha”. Nuno Amorim tabalha essa complexidade, entre as personagens dos autores e as suas dificuldades criativas, e o aparecimento de cenários, objectos e personagens da história que está a tentar conceber. Há ainda a poesia e o medo no delicado filme de Bruno Carnide sobre “A Rapariga que Caminhava sobre a Neve”, pois não contaminar os outros com a sua melancolia. 

Nos extremos formais e temáticos estão mais duas outras obras. O cândido “O Conto da Raposa”, no qual Marta Allen traça a viagem efabulatório de uma raposa e dos pequenos amigos que encontra, enquanto tenta comer uma maçã. E o mais enigmático “In Imperio”, com homens gigantes que vivem rodeados por peças geométricas, fechados ou a encarcerar outros, algures num cosmos a preto-e-branco. A profundidade e o fora de campo, o interior e o exterior, o limite e o infinito são dimensões exploradas, num filme onde o som reforça a sensação de que estamos a ver e a sentir coisas sobre as quais não conseguimos falar…

Por que é que estes filmes de animação, reveladores de tanta vitalidade criativa e que envolvem o esforço de tantos profissionais, não chegam à maioria das pessoas? A questão envolve sempre a lacuna existente em relação à distribuição e exibição das curtas e longas-metragens de animação, mas também de todo cinema (com apoio financeiro, ou não) produzido em Portugal.

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