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Paisagem e Povoamento, 100 anos de Carlos de Oliveira

Carlos de Oliveira nasceu há 100 anos, a 10 de Agosto de 1921, em Belém do Pará.

Cresceu na Gândara, desde os dois anos, e aos onze foi estudar para Coimbra. É ainda nessa década de 1930 que vai encontrar os amigos e o seu Mestre, Afonso Duarte, que o acompanharão numa longa jornada de literatura, e descobrir as tragédias que abalam o mundo (e a sua aldeia de Corgos).

A obra literária de Carlos de Oliveira não é extensa. Mário Dionísio dizia, com graça, que ocupava “pouco mais de um palmo de estante”. Entre romance e poesia, essa curta obra é suficiente para descobrir o que nos quis deixar em cada palavra escolhida, em cada pedaço interior. Dentro de cada livro há um trabalho quase obsessivo, um depuramento permanente de frases e versos (um ofício de escrita). Todo o excesso de palavras, o ruído que distrai, desaparece, restando apenas uma simplicidade rara que, num instante, nos mostra uma paisagem inescapável.

Todo este universo do ofício da escrita foi muito bem explorado por Osvaldo Silvestre, numa exposição no Museu do Neo-Realismo, em 2017, à qual o curador chamou “a parte submersa do iceberg”. A expressão, retirada do texto “O Iceberg’’, foi usada pelo próprio Carlos de Oliveira para se descrever como um escritor sem biografia, tal como o foi “todo o escritor português marginalizado”. Com o objetivo de revelar essa biografia quase clandestina, reprimida, marginalizada de Carlos de Oliveira, “a parte submersa do iceberg” teve o mérito de trazer à tona detalhes que iluminam a nossa compreensão de uma obra delicada. Osvaldo Silvestre conduziu-nos nos interstícios da vida e obra daquele que é um dos grandes escritores do séc. XX. Desde as suas próprias obsessões literárias, semeadas por toda a obra, mas com particular destaque em O Aprendiz de Feiticeiro (a bússola para o mapa do autor), ao desvelar da intimidade das palavras escolhidas, aquela exposição mostrou-nos a biografia possível, tangível e intangível. Toda essa beleza parte, em primeiro lugar, de uma imensa ternura.

Em Carlos de Oliveira a ternura é sentida na delicadeza das descrições, na ausência de paternalismo, num otimismo latente, tão acompanhado pelo majestoso Sim! de Fernando Namora. É uma ternura que viaja por toda a obra, deixando-nos uma pista biográfica sobre a conceção que o autor tem das várias dinâmicas da vida. Tome-se como exemplo a recusa em atribuir à mulher um papel subalterno. Em Carlos de Oliveira, a mulher assume um papel emancipado e emancipador. Se em Uma Abelha na Chuvaesse papel é confrontado com as circunstâncias da época, em Finisterra ele respira outra paisagem, tornando-se mais explícito. Mesmo em O Aprendiz de Feiticeiro (regressamos à bússola), a sua mulher, Ângela, não nos aparece como um adereço. Oliveira revela-nos isso com naturalidade, como na pergunta que ela lhe dirige numa viagem acelerada de carro: “Sabes, um suicídio a dois só com o acordo de ambos e tu não me perguntaste nada, pois não?” Não é uma pergunta vã, é retórica assertiva sobre relações de poder, que ele reconhece como princípio.

Não deixemos, por isso, que a nuvem estética de Carlos de Oliveira nos impeça de ver os objetivos do seu pensamento, esse permanente caminho onde semeia a ternura, de onde nasce a esperança e a vontade da transformação. Sem nunca esquecer o materialismo, ele vai descrever-nos uma realidade de exploração que se afirma na boçalidade de personagens rancorosas. Mas em momento algum nos deixa entregues à inevitabilidade. Em Carlos de Oliveira nada é fatalismo, tudo é horizonte. 

Não será fácil encontrar um escritor que tenha trabalhado tanto no seu ofício, não por vaidade da frase, mas por simplicidade. E talvez seja tudo isto que faz de Carlos de Oliveira (que seja, arrisco!) o mais brilhante escritor do século XX.

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