Cultura

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“A que título é que pretende transformar o mundo?”

Algumas pessoas desenham paisagens de fio a pavio. São delas o chão e os elementos naturais, as verticalidades, personagens, as surpresas e efemeridades. Falar sobre elas poderia ocupar-nos intermináveis dias, escrever sobre elas assemelha-se a uma tarefa hercúlea. Assim poderíamos ousar introduzir o trabalho de Ernesto de Sousa (1921-1988).

Tomando a criação artística como caminho para a libertação social, diverge de correntes surrealistas da sua época e assume uma identificação clara com o neo-realismo. Colabora desde os tempos de estudante com alguns jornais e revistas como o Horizonte, a Seara Nova, o Mundo Literário, a Vértice, entre outros.

Cedo desiste do curso de ciências físico-químicas que frequentava para submergir numa simbiose que partindo da fotografia abrangia também o cinema documental, a literatura e a investigação social e histórica – e assim começa por estudar história do cinema e da cinematografia na Sorbonne, entre 1949 e 1952. Em Paris torna-se membro do Ciné-Club du Quartier Latin (local que alberga o inicio da sua amizade com André Bazin e François Truffaut) e estagia em Marly-le-Roy onde conhece Alain Resnais, Agnès Varda e Jean Michel.

Este trabalho próximo com o universo dos cineclubes franceses parece ter motivado a formação do primeiro projecto do género em Portugal, aquando do seu regresso – O Círculo de Cinema – cuja sede, assaltada pela PIDE em 1948, acaba por ser cenário da primeira detenção de Ernesto como militante da defesa da justiça e da liberdade política e cultural. 

Inicia a publicação de algumas revistas de Cinema como a Plano Focal e a Imagem e submerso neste universo acaba por conseguir realizar uma longa-metragem, Dom Roberto (premiada em Cannes em 63) graças à criação de uma cooperativa de cinema. 
Dedica-se paralelamente a uma intensa investigação sobre a arte popular portuguesa: trabalha activamente na divulgação do trabalho de Rosa Ramalho e Franklin Vilas Boas com o projecto barristas e imaginário; publica um compêndio intitulado Para o estudo da Escultura Portuguesa e realiza um estudo relevante sobre os espectáculos de fantoches, com especial destaque ao trabalho de António Dias. 

E parece ter ainda encontrado tempo e criatividade para mais um complexo experimentalismo com a encenação do exercício de comunicação poética, no qual entre música de Jorge Peixinho e do Grupo de Música Contemporânea percorre a obra de autores que o fascinavam particularmente, como Almada Negreiros (figura central da sua investigação nos seus múltiplos formatos de criação), Herberto Hélder, Luiza Neto Jorge ou Mário Cesariny – e deste encontro surge posteriormente a Oficina Experimental, para desenvolvimento de projectos colectivos de criação permanente. 

Apesar de toda esta extensão do terreno criativo, terá sido a fotografia a chave de enclaveque agrupa, descreve e simultaneamente questiona todo o seu trabalho. Uma referência do seu ponto de partida e porto de chegada, que utilizou para agregar o seu percurso multidisciplinar. Utilizou as suas possibilidades para ensaiar perguntas e respostas sobre o mundo, inventou através delas um alfabeto crítico e estético próprio e de incomparável valor. 

Sempre se assumiu enquanto um trabalhador artístico, um trabalhador intelectual – convocando conscientemente o compromisso combativo que lhe poderia ser outorgado, de si para com um sistema socialmente opressor mas reconhecendo também incontornáveis contradições: “a verdade é que cruzar os braços é uma traição. O trabalhador da Lisnave não aperta só o parafuso com perfeição, e é coerente consigo próprio, associando-se responsavelmente à comunidade a que pertence e combatendo as contradições dos outros, isto é, da sociedade toda que o aliena. Quase todos os outros trabalhadores, desde os artesãos e oficiais-do-seu-ofício, aos intelectuais, têm de combater também as suas próprias contradições, têm de combater consigo-próprios.”

Tanto mais haveria a dizer e tão poucas palavras nos sobram perante tamanho comprometimento, complexidade e maturidade artística, perante tamanha militância com a preservação da memória significante, das pessoas e das suas histórias, do limite do sonho, perante gente com tamanhos interiores realmente capazes de albergar a criação. 

“…que a liberdade deve ser coisa de terra e de raíz
sabemos isso
sabemos que sem terra e sem raíz a liberdade não passa de vento.”

Ernesto de Sousa.

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