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Da Bahia a Portugal: a faca no prato e o cravo ao peito

O nordeste brasileiro, mais concretamente o estado da Bahia, guarda, nos seus quotidianos, segredos que não caberiam na extensão das palavras possíveis mas, entre eles, um hábito bonito de dizer o que há para dizer, fazendo uso dos veículos mais simples.

Seja no meio da rua, na beira da praia, no jardim público, na sala ou no quintal de alguém, basta que se jun- te um punhado de pessoas para que surja música e, com ela, a mais subtil forma de protesto através da alegria.

Dispostos a partir de uma roda central, as pessoas tocam, batem palmas, cantam, e sobretudo dançam, aparentemente indiferentes à passagem do tempo. Os lugares parecem transformar-se progressivamente em altares onde cada corpo faz o seu culto e cada voz a sua oração.

Apesar das manifestações musicais serem de uma diversidade ampla, são sobretudo comuns as rodas de samba ou samba de roda. Os presentes percebem como se tratam de palavras tão novas quanto antigas, são músicas que se tocam desde 1850 e que contêm a miscigenação absoluta daquelas pessoas.

Aprendi que se divide em duas formas, o samba chula e o samba corrido. Se for samba chula, ninguém dança enquanto é declamada a chula (uma poesia) e depois de dita, uma pessoa de cada vez ocupa o centro da roda, ao som dos instrumentos e das palmas. Se for samba corrido, todos dançam, enquanto se alternam as vozes que cantam.

As rodas de samba que por lá pude ver foram anzóis certeiros à minha atenção. E posteriormente conservada no sal grosso dos sons quentes e esperançosos que ouvi, fez com que me dedicasse a procurar o que fosse possível encontrar sobre estes momentos. Foi assim que tropecei na voz de Dona Edith do Prato, amiga íntima de Dona Canô e ama de leite dos irmãos Veloso (sim, a Bethânia e o Caetano).

Edith do Prato tocava todas as suas músicas fazendo soar uma faca a bater num prato. Apesar de serem músicas do domínio popular, ela cunhava-as com um traço de singular maestria e acabou por gravá-las numa colectânea com o coral Vozes da Purificação.

Também podemos ouvi-la no álbum de 1973, Araçá Azul, de Caetano Veloso com a música Viola meu bem, ou na chula Filosofia Pura, que gravou para o álbum Ciclo de Maria Bethânia, em 1983. Assim, ouvi-la não será tarefa demasiado difícil, basta uma rápida procura que se encontrará o tesouro.

O que sem dúvida se pode reter é a extraordinária capacidade de fazer do corpo e da voz veículos insubstituíveis de protesto e combatividade. Um protesto alegre mas simultaneamente profundo e afado – nenhuma afição se detém na garganta, mas são antes expostas e exaltadas pelo grupo que toca, canta e dança.

Não é casual que no samba-protesto se pousem, por estes últimos dias de Abril, os pensamentos. Foi justamente a convocação dessa alegria, da necessária confiança no porvir e na força do colectivo que nos trouxe à janela para cantar a Grândola Vila Morena do José Afonso, no dia 25.

Transportados pela mesma exaltação e urgência de transformação social de há 46 anos atrás, cada um de nós pôde, desta forma, reduzir distâncias e unir a sua centelha e comprometimento aos demais.

Cantar a música que no passado foi senha, serviu certamente para que lhe tenhamos renovado os votos. Votos de um sentido de justiça comum que a cada ano que passa parece aumentar a sua ausência, deste cantinho de terra com brisa de mar.

Que seja pois alegre e confiante no porvir, a luta tão necessária.

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