Na madrugada de 19 de Novembro, morreu José Mário Branco, aos 77 anos. José Mário Branco, o Zé Mário, músico, cantor, cantautor, compositor, arranjador, militante. Ou como diria, no fecho de «FMI»: «português, pequeno-burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro […] do Porto, muito mais vivo que morto».
José Mário Branco deixa-nos uma obra vasta. Vasta de interrogações, respostas, verdades, alertas, caminhos abertos para o que virá, pois, «que caminho tão longo, que viagem tão comprida, que deserto tão grande, sem fronteira nem medida […] ventre calmo da terra, leva-me na tua guerra, se és minha amiga». Uma obra vasta que foi a todo o lado onde podia ir, onde José Mário Branco quis ir: a música de intervenção, a chanson française, o jazz e o blues, o rock e as guitarras eléctricas, o rap, o fado e as marchas populares, os coros e gente que se junta, a música clássica e os quartetos de cordas, a música popular a dar uma mãozinha imprescindível.
E, assim, não andou sozinho: fundou o Grupo de Acção Cultural (GAC) – Vozes na Luta, participou em discos de José Afonso, Sérgio Godinho, José Jorge Letria, Carlos do Carmo, Janita Salomé, Gaiteiros de Lisboa, Amélia Muge, Camané ou Kátia Guerreiro, gravou com os Mão Morta e os Peste & Sida. Participou em filmes de João Canijo, João César Monteiro, Jorge Silva Melo, Luís Galvão Teles, Paulo Rocha, Rita Azevedo Gomes ou Solveig Nordlund. Fez teatro e música para teatro, em França, no Groupe Organon, e em Portugal, na Comuna, no Teatro do Mundo – companhia que fundou –, no Teatro Experimental de Cascais, na Cornucópia, n’O Bando, n’A Barraca.
Militou em partidos: no PCP, na UDP e no BE. Militou em jornais: na Política Operária, no Mudar de vida, no Passa Palavra. Foi solidário com lutas de trabalhadores e estudantes, percorreu o país durante o PREC, a cantar, a ensinar, a aprender. Zangou-se, rompeu, desiludiu-se muitas vezes. Foi solidário, assim, p’ralém da vida.
José Mário Branco, marginal de certa maneira, cantou contra a guerra em «A ronda do soldadinho», em 1969, e voltou ao tema do colonialismo, muitos anos depois, em 2004, em «Canto dos torna-viagem». Cantou contra o paternalismo e o machismo, em «Aqui dentro de casa». Contou a desilusão do 25 de Novembro em «Eu vim de longe, eu vou para longe». Denunciou o poder dos média, da sua luz brilhante, omnipresente-nesga e hipnotizante, em «Menina dos meus olhos». Deixou-nos sementes do seu peito, em «Eh! Companheiro».
Num concerto, dizia que «a afinação é um conceito pequeno-burguês», depois de se ter demorado a afinar a guitarra. Uma contradição descontraída, para quem era importante a clareza da mensagem: para se perceber, para ter impacto, é preciso ouvir-se bem, era preciso passar bem a mensagem, com qualidade. Fosse em concertos solidários – e houve tantos, para tantos de nós, todos eles importantes –, como em concertos nas grandes salas de espectáculo. No José Mário Branco havia uma grande exigência com o presente para construir o futuro. E um compromisso com os que «somos explorados no trabalho, e não só».
Interrogou-nos, a certa altura (foi em 1978, n’A Mãe), no meio das canseiras desta vida, se «é na morte ou é na vida que está a chave escondida». E agora, Zé Mário, depois de tantos anos de inquietações (ai, porquê não sei, mas sei, é que não sei – ainda), perguntamos: como continuar?
Em tensão, «como um arco tenso com a seta apontada para o futuro». E acompanhado: nesta viagem cada um vai metendo «um pauzinho na engrenagem».
Em 2018, José Mário Branco reeditou toda a sua obra em disco, editou um novo disco de inéditos e disponibilizou todo o seu arquivo no CESEM da FCSH-UNL, que pode ser consultado online. São ferramentas para mudar de vida.