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Sobre o suicídio e o filme “Chamada para a Vida”

O protagonista e voluntário Sidney Poitier, e a história de um filme com poucas ligações à realidade portuguesa

A primeira obra que Sydney Pollack realiza para o grande ecrã, em 1965, “Chamada para a Vida” (“The Slender Thread”), retrata uma única situação milimetricamente escalpelizada de uma mulher de trinta anos que liga para uma linha de apoio psicológico para aqueles que tentam ou pensam suicidar-se. É um filme baseado numa história na altura publicada na revista Life, e o “caso real” só nos pode alertar para o facto de que o suicídio aí está e continua bem como outras prevalências e doenças de cariz psíquico, talvez até com maior predomínio, face ao que o mundo enfrenta em termos epidémicos. 

Sidney Poitier, recentemente falecido (a seis de Janeiro, com 94 anos), e que dois anos antes da produção deste filme foi o primeiro actor negro a ganhar um Óscar (como Melhor Actor Principal em “Uma Voz nas Sombras”, “Lilies of the Field”), interpreta o papel de um jovem estudante voluntário de uma linha de apoio, no Centro de Crise, linha disponível vinte e quatro horas, pois como diz num cartaz na sala de atendimento, de dois e dois minutos alguém se tenta suicidar nos Estados Unidos.

Segundo uma notícia de Setembro de 2021 publicada no Diário de Notícias, há em média três pessoas que decidem pôr termo à vida no nosso país. Número que aumenta no resto do mundo: de quarenta em quarenta alguém comete suicídio no mundo. 

No nosso país não existe uma linha que consiga estar permanentemente disponível para este tipo de situações limite. O SOS Voz Amiga é a linha que está mais próxima do retratado em “Chamada para a Vida”. Existe desde 1978, é composta por voluntários com formação prévia, e o atendimento, que funciona todos os dias do ano entre as 15h30 e as 24h30, é confidencial e feito em regime de duplo anonimado. 

Ao contrário do que vemos descrito no filme de Pollack, a referida linha nacional não pede aos apelantes o nome ou sequer pode saber o telefone; por seu turno, os voluntários também não referem a sua identidade, sendo que podem sugerir que quem liga pode dar-lhes um nome. É uma conversa entre duas pessoas numa sala.

No filme de Pollack, o voluntário Allan Newell tem o apoio de um psiquiatra, que acaba por regressar ao local de atendimento perante a situação de crise de uma chamada. Nesta linha que funciona para todo o país, os voluntários assistem e participam em reuniões semanais orientadas por uma psicóloga, onde podem falar e debater chamadas ou questões e temas centrais da saúde mental, ou que surjam nos telefonemas que vão recebendo durante os turnos de atendimento. 

Vejamos a narrativa de “Chamada para a Vida”. Newell recebe a chamada de uma mulher, Inga, interpretada por Anne Bancroft, que acabou de ingerir uma grande quantidade de barbitúricos. A missão do primeiro é falar com a mulher, localizá-la, e evitar que esta acabe por morrer. Toda uma equipa vai sendo mobilizada nesse sentido. Não só o psiquiatra vai ao encontro de Poitier, como acontece o regresso de uma secretária que supostamente já teria abandonado o local de atendimento, bem como um outro técnico, que consegue ir vigiando as pulsações de Inga através da sua voz ao telefone. Fora daquele ambiente vemos telefonistas, polícias dentro e fora de uma esquadra a mobilizar constantes esforços para chegar à mulher em vias de concretizar o suicídio. 

Entre esta linha de acção, Anne Bancroft vai contando a sua história a Poitier, ou seja, tentamos perceber as motivações para aquele acto fatal. Vamos vendo episódios em flashback da sua história recente de vida. O que sentimos é que ela é uma mulher de classe média , com muito poucos interesses, com um trabalho de secretária numa empresa, e que entra sobretudo em crise emocional, quando o marido, um pescador de alto mar, descobre que o filho de ambos, com doze anos, é afinal filho de um homem com quem Inga teve um caso. Tudo se desmorona, e vamos acompanhando as sucessivas tentativas desta mulher de trinta anos para se tentar reaproximar do marido. De qualquer forma, o colapso é iminente; o que sentimos é que, independentemente do segredo revelado, que abalou a relação, a família e o casamento, esta mulher parecia ter um vazio interior e emocional. 

Muitas vezes isto é o que é difícil de registar e explicar racional e exteriormente. Ou seja, uma perspectiva exterior dirá que Inga não tem grandes motivos para se suicidar. Independentemente de tudo, o marido não se foi embora, o filho nada sabe. Tem pelo menos um casal amigo, uma casa de classe média, emprego. O sofrimento interior e emocional tem razões que a razão desconhece. Ou esta mulher está apenas insatisfeita com a vida conformada que tem, em termos profissionais e pessoais. O que faz ela pelos outros, o que faz ela para mudar a sua vida, o que faz ela para criar comunidade (ou se aproximar dela)? Se formos ler as motivações principais que levam a tentativas de suicídio lemos, ainda no mesmo artigo questões como a solidão, o desemprego, o isolamento, a depressão, problemas económicos, de habitação, divórcios, etc. Por isso, estas linhas são tão personalizadas, e atentam a cada pessoa que liga, sem limite de duração da chamada. Apesar do voluntário ter de fazer, durante o seu turno, no que respeita por exemplo à linha SOS Voz Amiga, a gestão desse tempo, uma vez que é uma linha muito solicitada, dada a carência ao nível da saúde mental em Portugal. 

A atenção dramática e narrativa dada à prevenção do suicídio: cada vida conta 

Newell só se dedica àquele caso durante os 96 minutos que dura o filme ; trata-se de uma situação limite. Aquela mulher está algures e precisa de ser salva. Para que ela não desligue e seja localizada, ele tem de ir mantendo com ela uma conversa. E a conversa passa por tentar perceber quem ela é, criar um elo, literalmente mantê-la agarrada à vida através da voz de um estranho, que naquele caso revela o seu nome. Podemos pensar, atentando ao que está escrito na parede da sala, que outras pessoas estão a ligar para a linha de crise (aliás no início existe um barbeiro bêbedo que o está a fazer, e que o jovem “despacha”, uma vez que Inga está já em linha). O que pode o jovem voluntário fazer? Além disso, nem todos os suicidas têm como derradeiro recurso telefonar para uma linha de ajuda, como a que o filme retrata, como o SOS Voz Amiga, ou mesmo a linha de saúde 24. 

O centro temático do filme é o que convoca esta reflexão. A saúde mental. O silêncio, a vergonha, a suposta fragilidade que as pessoas sentem ao esconderem como se sentem, e a falta de apoio que têm. No fundo, fazendo do seu sofrimento um segredo, adensando-o ainda mais. Por isso, por mais excêntrica que seja a situação retratada em “Chamada para a Vida”, ao acompanharmos em directo todo um telefonema, as causas reveladas em episódios da vida da interlocutora, ao vermos quantas pessoas e meios são numa noite mobilizados para salvar uma só pessoa, percebemos como cada vida é importante e conta. Mesmo para estranhos, que fazem desse “salvamento” uma missão, como Newell (que é estudante e voluntário), ou mesmo profissão (telefonistas, bombeiros, socorristas, polícias, psiquiatras). E percebemos como está o nosso país longe do que o filme retrata.

No final, Inga é descoberta num quarto de hotel, onde está a acontecer uma convenção e festejos com dezenas de pessoas alheias ao seu sofrimento. Inga não está afinal só, pelo menos exteriormente: o marido é avisado, aparece na sala do Centro de Crise. E toda uma equipa consegue descobri-la, inconsciente mas a respirar. 

Penso no fim do filme, perante o cansaço sobretudo do voluntário Newell e na sua satisfação; em todos o que morrem sozinhos, no silêncio, em desespero e na escuridão. Sem apoio psiquiátrico e psicológico. Sem uma voz familiar, amiga. Se podíamos apontar muitas questões à realização “televisiva” (com uns zooms sobre momentos emocionais) ou à própria ideia de diegese contínua que se pode tornar aborrecida, focada naquele espaço interior onde decorre o atendimento, onde está Poitier, e os episódios em analepse da vida passada de Bancroft, trazer em 1965 este assunto para o centro de uma longa-metragem, falar dele em 2022, seja sob a forma de uma crítica, seja até pensar em reflecti-lo num outro objecto cinematográfico, artístico (ou em debates e outras reflexões mais imediatas na sociedade) é fundamental face à situação que nacional e mundialmente vivemos.

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