Cultura

Sobre “Crónicas Algarvias”, de Manuel da Fonseca, e de “A última Fuga”, de Richard Fleischer

Filmar e imaginar um filme em Albufeira: um protagonista de ficção, e os habitantes “reais”.

A propósito do ciclo em torno do Director de Fotografia sueco Sven Nykvist, a Cinemateca, Museu do Cinema, passou o filme “A última fuga” (“Last Run”), de Richard Fleischer. Como escreve Manuel Cintra Ferreira na respectiva folha de sala, “é um filme que tem como pano de fundo a Península Ibérica”. Mas disso só damos conta depois dos preparativos que detalhadamente acompanhamos o protagonista a realizar em torno de um carro, ao mesmo tempo que vemos o genérico. Da minúcia e ritmo lento a que a entrada no filme alude, vamos para uma paisagem que nos avisaram já que é algarvia na sinopse do filme. O ritmo acelera exponencialmente. Curva e contra curva, junto ao mar, o mesmo carro conduzido por Harry Garmes, papel interpretado por George C. Scott, numa corrida louca e quase mortal a cada curva. Não esqueçamos o título deste filme de 1972: “Last Run”, “A última fuga”. O destino de Garmes é a praia de pescadores de Albufeira (tanto neste arranque como no desfecho). Sobre essas enseadas fala também Manuel da Fonseca na crónica que dedicou a Albufeira, no decorrer do périplo que fez, em Agosto de 1968, por terras a sul. “As arribas, de rochas doiradas, corroídas pelo arremesso raivoso das vagas e das ventanias que vêm de longe, iradas, raspando ao rés da água, cobrem-se, nos topos, de uma vegetação rasteira, que parece escorrer como uma frescura de limos-verdes.” 

Quatro anos antes da produção da MGM ter vindo para Portugal filmar parte do filme, já Manuel da Fonseca, visse nestas terras um cenário cinematográfico. Na versão em livro, publicada pela Caminho em 1986, constam excertos de diálogos que o escritor foi mantendo com o editor d’A Capital, sobre as mesmas crónicas diárias. Fonseca também conseguiu recuperar a maioria dos textos sem os cortes da Censura. Por isso, interrompendo a primeira parte do texto, e depois de relatar a primeira impressão que teve com a sua chegada a Albufeira (não de carro e a alta velocidade, mas de autocarro), temos um fio de conversa: – Abertura para um filme? – Albufeira merece-o. 

O protagonista de “A última fuga” vai ao encontro de Miguel, um pescador, que guarda o seu barco de pesca, informa-o que vai partir e que será ele quem continuará responsável pela embarcação na sua ausência. Percebemos mais tarde que Garmes é filho de mãe portuguesa, e vive há nove anos em Albufeira para onde foi com a mulher, e sonho de ter um barco e ser pescador. A mulher desapareceu com outra pessoa depois da morte do filho de ambos. O sonho ficou para trás, este é um homem que nunca se conseguiu libertar do passado. Vemo-lo a ir à campa do filho, e temos como centro do filme a última missão que decide fazer como gangster, e ao fim desses quase dez anos de interregno: ajudar à fuga e transporte de um prisioneiro de Espanha para França. 

Manuel da Fonseca passa também por essa praia: “Saio pela praia dos pescadores. Incrustada na rocha, uma construção tosca, com a larga parede escalavrada, como que feita de rocha amarelo-rosada, com o caixilho das janelas vermelho-vivo, faz o contraste surpreendente com o prédio, que se lhe encosta, esguio e de varandas, pintado de verde. (…) Passo perto dos barcos. Alguns têm ainda as velas abertas como asas. Aqui e além, remos, redes.” O escritor queria sobretudo captar o movimento das gentes daquele lugar; por isso, com o propósito de pedir lume para um cigarro, fala com um casal de jovens que lhe dizem: “A vida aqui é sempre alegre. A maioria, estrangeiros e portugueses, está quinze dias, um mês. Renovam-se constantemente. Chegam e trazem dinheiro fresco. E a boa disposição continua toda a época. Não há princípio nem fim de Verão.” É um destes estrangeiros, luso-descendente, que descobre os encantos de Albufeira. É sobre os seus últimos dias que se centra “A última fuga”. 

No entanto, Garmes, um solitário, manteve-se distante dos algarvios (ou assim decidiu o argumentista Alan Sharp), tendo somente ligação com Miguel, e uma prostituta (e mesmo estes parecem personagens que funcionam em prol do enredo, sem uma caracterização aprofundada). Ainda na crónica de Manuel da Fonseca, rapariga fala da beleza dos nomes das localidades que circundam Albufeira: Galé, Maria Luísa, Olhos-d’Água, Baleeira, Ninho das Andorinhas, e o rapaz acrescenta: – Acho que te esqueceste de qualquer coisa. (…) Dos habitantes. São os melhores do mundo. O meu marido é de Albufeira. Mas, sem lisonjas, é uma gente simpática.” 

Albufeira apenas como pano-de-fundo de um filme / Albufeira centrada nas pessoas numa crónica 

O filme não se centra nas gentes de Albufeira, jovens, pescadores e outros; a localidade é apenas cenário para a viagem circular de Harry. Era ali que queria acabar os seus dias, aceita a viagem para resgatar o prisioneiro Rickard; por causa dos incidentes de percurso, é ali que termina, morrendo na mesma praia onde falou com o pescador Miguel. É ali, moribundo, que observa o casal (a partir de certa altura Rickard encontra-se com a companheira que passa a fazer parte da fuga). Estamos longe do que, por exemplo, fez Paulo Rocha em “Mudar de Vida” (1966), a sua segunda longa-metragem, ao adiar por um ano a destruição da última companha, em Furadouro, comunidade piscatória a norte de Portugal, escrevendo a história de Adelino e Júlia, e o seu reencontro após anos de ausência deste em África, recorrendo às gentes que ali nasceram, ali trabalhavam na faina em alto mar, nas redes, na apanha das agulhas de pinheiro ou da areia. 

Ainda à descoberta, Manuel da Fonseca entra num café que tem expostos os quadros de João Bailote; pergunta ao dono do café pelo autor dos mesmo, que o informa que Bailote anda na pesca. É a pesca o foco das suas telas. Depois, ao entrar numa papelaria para comprar um maço de tabaco, Fonseca nota “um jornal redigido em quatro línguas. Português, francês, inglês e alemão; um jornal de Albufeira. – Deve ser único no País – admiro-me. Num sorriso espontâneo de malícia e de orgulho, a rapariga, atira-me com esta: – Também Albufeira é única no país.”

Quando regressamos a Albufeira, já no final de “A última fuga”, nos derradeiros instantes dessa fuga, o carro de Garmes fica entalado numa das ruas esguias do centro da vila. Estamos longe da perícia e vitalidade com que o protagonista percorreu as arribas algarvias no começo do filme. De novo, as ruas são instrumento para o dispositivo dramático, que impede o protagonista de seguir viagem naquele que é o seu mais importante “elo”, o seu carro – mais do que para a invocação dos que por ali andam e vivem, ou dos estabelecimentos que por ali possam existir. Mesmo que fosse sob o olhar ou a propósito de um passeio do protagonista. Como faz Manuel da Fonseca: “Subo ao terreiro da casa do peixe. Para lá da esquina, sigo por uma rua íngreme. E, como se tudo, casas e ruas, fosse lavado de cal e de sol, subindo sempre, chego ao coração da antiga Albufeira. Rua da Igreja Velha, Rua do Correio Velho. tudo velho, ruas, becos, vielas. Mas tudo caiado e limpo, tudo varrido, do vento do mar. Velhos, velhas, crianças, pescadores. Redes como estore, a taparem portas. Cheiro a peixe.” 

Num excerto dos diálogos entre o escritor Manuel da Fonseca e o editor Mário Neves: – Neste final, melhoraste. – Achas? – Melhora-se sempre quando aparecem pessoas, podemos constatar que o objectivo do escritor é diferente daquele que o filme de Fleischer propõe. Albufeira e os seus habitantes e trabalhadores são mero cenário de fundo em “A última fuga”, desde os homens que estão no café onde páram os fugitivos, e vêm um filme também de gangsters (que nunca estaria a passar na televisão de um daqueles cafés, que se assemelha mais a uma tasca), aos guardas que conferem os passaportes na fronteira. O centro narrativo do filme é a história desse homem, norte-americano, que, como diz o prisioneiro que ele ajuda a escapar, já estava morto há muito tempo, mesmo antes de ser alvejado. Garmes apenas quer descobrir se ainda é possível ter um objectivo, uma missão que consiga abraçar e cumprir na sua vida. Portugal e Albufeira apenas fazem parte desse fim-de-linha, de um último estertor. 

Daí podermos talvez dizer que o nosso país é uma espécie de postal ilustrado, em 1971, vésperas da queda do regime fascista, para a história de um homem em decadência, que cumpre aquela corrida louca no começo, desafiando a morte, para abraçar esse fim derradeiro no areal da praia, no desfecho do filme. Em última análise, o barco que comprou salva o casal de evadidos, sacrificando a sua vida, e a do pescador Miguel, que nada tinha a ver com todo este enredo (tão distante da sua vida diária) e foi morto, por aqueles que boicotaram toda a missão da fuga. 

Falando sobre as suas dores, dificuldades e trabalho árduo, os protagonistas da obra de Manuel da Fonseca são aqueles que costumeiramente ficam na sombra. Como podemos constatar também nos versos do seu poema “ Canção da beira-mar”:  “Ó mar que és um leão, / com a tua garra, / a vaga, / despedaça a amarra / que nos prende à terra. (…) A noite passa, / o dia volta… / e no peito dos homens / sempre o mesmo grito de ansiedade e de desgraça: / – Ó mar de revolta! / montanhas de água, / oceano de vendavais (…)”.

Concluímos a crónica com um dado que o próprio Manuel da Fonseca deixa no prefácio ao livro, datado da altura de edição do mesmo, 1986: “Pelo censo, de 341 843 habitantes (na região do Algarve) apenas 125 857 exerciam profissões. Destes, só 73 004, na sua maioria, segundo antiquíssimos usos e costumes, trabalhavam como desde há mil anos na pesca e na agricultura; 52 853 nas comunicações, nos transportes, na indústria, esta quase inexistente se exceptuarmos o turismo.” Dois desafios ficam, para próxima investida. Saber, de acordo com os censos 2021, como se distribuem pelos diferentes sectores profissionais de actividade (bem como os números do desemprego) os 226 839 habitantes do Algarve… E, numa revisitação e caminhada pelos lugares do barlavento mencionados nas crónicas de Manuel da Fonseca e no filme de Richard Fleischer, perceber como estão, que pessoas os habitam e neles convivem. 

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