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“Remédio”: a loucura ou a luta pela sanidade? 

Autoria: Jorge Gonçalves

Vale a pena ir ver “Remédio” no Teatro da Politécnica. “Remédio” peça de Enda Walsh, dramaturgo irlandês nascido em 1967, que os Artistas Unidos, pela encenação de António Simões, voltam a traz a palco. É num turbilhão de acontecimentos que somos lançados depois de vermos John Kane, interpretado por Rúben Gomes, entrar num salão. Balões a completar a Parabéns, uma mesa com os restos do que foi uma festa. John, de pijama, percorre o espaço, e dirige-se a um canto, onde se senta, numa cabine, a escutar uma voz que lhe pergunta como se sente. John demora a responder. Está nervoso. Entra apressada, Mary (papel que coube Íris Runa, à bailarina de formação) ou melhor, o “Velho”, máscara que a rapariga ainda traz de outro trabalho. Faz exercícios, põe música, prepara-se para o que se vai seguir. Entra também a lagosta, o fato que traja a outra Mary (Maria Jorge), que também vem de outro trabalho, uma festa infantil. As duas não se conhecem, mas têm uma missão que envolve John, que ainda não é clara para quem vê estas figuras insólitas em palco. De facto, Mary 1 e Mary 2 são também actrizes na peça. Entram também um baterista que acompanha tudo o que se segue. Mary lagosta faz perguntas a John, este também lhe pergunta pelos seus sonhos. Mary improvisa: inventa e interpreta esse sonho que teve com um unicórnio. Mary ajuda-a nessa representação, a música dá o ritmo. John observa, impávido. Até que assume o lugar em frente ao microfone, e começa a ler o que escreveu sobre si. Escutamos e vemos vários episódios da sua vida, que arrancam no nascimento. Momentos de comédia que as Mary vão interpretando, mudando vertiginosamente de figurino. 

Vai sendo perceptível que John está num hospital, perguntam-lhe as vozes e Mary Lagosta: E por que é que veio para aqui? Quem é que teve a ideia de vir para aqui? John não sabe há quanto tempo ali está, é difícil responder às razões. Foram os pais, o médico da cidade. Pelos relatos da sua biografia, por aquilo que John vai trazendo também à consciência concluímos que foi violentado por outro miúdos, que os pais o negligenciaram, e que houve em tempo Valerie. A rapariga, que conheceu no hospital, era aquela que via perto do muro, com quem estabeleceu amizade, por quem se apaixonou. Valerie é a esperança num mundo fora do horizonte limitado daquela instituição. Nem isso lhe foi permitido. Liam, o guarda, violenta-a. Com o desaparecimento de Valerie fecha-se uma cortina na vida de John, que sente culpa, angústia, vazio, e todo o turbilhão de sentimentos e memórias traumáticas se confundem: “Como é escura a noite lá fora”, confessa. Por que é que está ali? Conseguimos concluir os motivos que levaram outros a protelar aquele internamento. E qual a missão das duas actrizes: fazer com que a reactivação dos momentos de trauma provoquem algum reconhecimento em John. Será isso remédio para os alívios do sofrimento e da ansiedade que as perdas e abandonos sucessivos causaram no jovem? A vertigem de tudo o que em quase duas horas acontece: as máscaras, o acompanhamento da bateria, os adereços que conta as várias mini-histórias com as representações peculiares, as personalidades das actrizes quando estão a representar ara John e não só tudo nos cria uma ambiente intimista, onde o cómico e a ironia seve para sublinhar a delicadeza da situação dramática: a loucura é apenas uma consequência dos outros loucos. A loucura está dentro e fora de um hospital. A loucura é o remédio para a outra loucura. Ou apenas o teatro como aprofundamento das emoções e do lugar da dor – e a interpretação soberba de três actores (e os ritmos do baterista Pedro Domingos). John diz: “Eu não sou bem como as outras pessoas.”, e acrescenta: “As pessoas não gostam de mim porque eu não sou bem como elas.” A sua (a)normalidade resulta da loucura dos outros. Talvez os lúcidos sejam ele: internado, a lagosta e a rapariga que entra como se de um velho se tratasse. Porque brincam à consciência desse passado traumático, à frente dos olhos e do futuro.

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