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A domesticidade e as tentativas de libertação em “Girafas”, nos Artistas Unidos

“Girafas”, peça do dramaturgo contemporâneo catalão Pau Miró, em cena até 30 de
Março no Teatro da Politécnica (Artistas Unidos), leva-nos para a intimidade de quatro
pessoas que vivem na mesma casa, para falar da sociedade silenciosa e opressora dos
anos 50, em Espanha – com todas as semelhanças com o Portugal fascista de então.

Jorge Gonçalves


No terraço, a Mulher (Eduarda Arriaga), estende a roupa, uma das suas tarefas diárias, desde que casou e deixou de trabalhar. Aparece um vendedor (Vicente Wallenstein), senhor Ventura, a única personagem a quem é atribuído um nome (talvez as outrasnão possuam essa particularização por simbolizarem o que se passava, na altura, com a maioria dos núcleos familiares), que lhe quer vender uma máquina de lavar. Trata-se de uma novidade que vai facilitar o trabalho doméstico, deixando-a com tempo para fazer outras coisas, como ir ao cinema. A Mulher escuta Ventura, fascinada. Fala depois da máquina ao Marido (Pedro Caeiro), operário, serralheiro, que anda sempre com a cabeça em pensamentos (e que pensamentos serão esses?) que o distraem do trabalho manual, correndo o risco de cortar os dedos.

O casal conversa sobre um possível nome para o filho que ainda não conseguiram ter; a Mulher mostra-se entusiasmada à frente do marido. A gravidez não acontece; ela confessa a Ventura que o problema é seu. Mais adiante, é ainda mais directa com o Hóspede: afirma que o filho não quis vir para um mundo onde as coisas estão sempre a desaparecer.

Há um rapaz (Gonçalo Norton), que começa por aparecer por trás do estendal. Não percebemos logo que é o Irmão da Mulher. Ela trata-o com ternura e alguma condescendência. O jovem anda de atacadores presos um ao outro – preso a uma ideia, atado a um trauma. Desenha e escreve sobre o que vê. Não fala com os outros; fala para si, connosco e para o céu. O terraço é o seu lugar.

O não-dito da opressão, e a subtil tentativa de emancipação feminina


A mulher está conformada com a vida em família, apesar de sentirmos uma latente insatisfação nas conversas que tem com o Hóspede (João Vicente). Existe uma bonita amizade entre os dois. Esses momentos aparecem depois da apresentação do trio familiar e de sermos “atirados” para uma das cenas mais brilhantes da peça: o actor João Vicente na actuação da sua personagem, num clube nocturno. É o momento em que toda a liberdade e libertação são possíveis. Mas existem represálias para o Hóspede, que fala de uma eventual prisão durante o espectáculo e surge com um olho negro, na cena seguinte, em casa.

“Girafas” trabalha questões centrais das personagens com subtileza, no não-dito das elipses e nas meias-palavras que entre trocam. Por medo, por discrição ou submissão. Quando vemos a mão ligada do Marido, percebemos que os seus pensamentos o dominaram, e ficou sem dois dedos. A sua frustração é crescente: sem trabalho, com muito tempo livre em casa e sem filhos, é mais austero com a Mulher. Percebe que existe cumplicidade entre ela e o Hóspede; quer que este se vá embora do quarto alugado. O que não vê imagina; o que imagina é da ordem do que nunca é dito, mas que não existe. Porque o Hóspede abre os campos da imaginação e do sonho à Mulher. Esses são os episódios de “Girafas” em que sentimos que o mundo daquela dona de casa pode ainda outras possibilidades. Ela fuma com ele, ele fala-lhe do sonho de ir para Paris, entrelinhas, da sua situação complicada…

As margens são difíceis de aceitar. São também as personagens supostamente marginais quem mantêm as duas fantasias e a esperança. O Irmão fala-nos sobre a mãe, morta por uma bomba. Olha para o céu: acredita que é de onde vem a luz e de onde regressará a mãe. É nessa ilusão – ou lucidez – que vai para o terraço. As luzes aparecem, e ele desaparece. Queremos acreditar que é, de facto, “o céu que o protege”, e que se cumpriu o seu sonho de reencontrar a mãe. Tal como se cumpre o sonho do Hóspede, de ir para Paris, depois de ganhar a lotaria.

A máquina de lavar: o altar que podia ter sido uma libertação


A ironia é que o casal não precisa de dinheiro para pagar a máquina de lavar, que lhe aparece um dia em casa. A resposta é a crueldade e o machismo do Marido, que quer que a Mulher devolva aquele presente do antigo Hóspede. O Marido quer destruir a máquina, entregar os seus pedaços ao ferro velho (como se dissesse que é à morte pertence a amizade que a Mulher tinha começado a aprofundar com outra pessoa). Vai oferecer outra à Mulher.

A máquina de lavar é o veículo da libertação feminina face às tarefas de casa; é, em contraponto, fruto do capitalismo e do desejo materialista como substituição de outras formas de desejo e liberdade (social, intelectual). Por isso, no final, a Mulher, sem outra saída para a sua vida, coloca as velas e a estátua de Nossa Senhora, deixadas pelo Hóspede, em cima da máquina, fazendo desta um altar. Sem força para se libertar, a solução é acender aquela pequena luz e rezar. Brutal esvaziamento do
sonho e da emancipação.

Porém, sabemos que o Irmão e o Hóspede foram cumprir o seu “Abril”: no céu, e em Paris. Serão eles, as Girafas desta peça?

“Girafas” é de uma sobriedade abissal. Um texto coreografado pela iluminação contida, certeira, que vai revelando e velando o que temos de ver, em primeiro plano, sem nunca esconder o “fora de cena”. Uma encenação em que conseguimos ver os planos, ou seja, puramente cinematográfica. A luz, a dramaturgia e a movimentação das personagens estabelecem essa relação directa com o cinema. Ainda bem que assim é.
E os actores estão magníficos. Mais uma vez, a casa Artistas Unidos está de parabéns.

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