Quando nos deparamos com uma planta que, ainda que visivelmente pouco nutrida conseguiu fazer desabrochar flores e frutificar, impõe-se um momento de incontornável alegria. Uma mesma alegria se deve invocar ao perceber que, mesmo face à sua constante subnutrição, também na produção nacional de cinema se têm criado bonitos e suculentos frutos.
Quando referimos um estado de subnutrição visamos não só a falta concreta de meios e recursos públicos de finamento para o cinema mas também a crescente influência das grandes empresas privadas (dominantes do sector dos média) nas decisões sobre a alocação desses recursos – basta atentar à polémica que marcou a anterior legislatura em torno da secção especializada do cinema e do audiovisual.
É importante lembrar que quando o Estado financia a produção cinematográfica está a garantir a expansão do nosso património cultural, visual, sonoro e mesmo imaginário; e por outro lado, está a assegurar a necessária diversidade do material produzido e que os espectadores poderão aceder a obras que não poderiam ganhar vida sem estes apoios.
Neste cenário difícil é de facto uma enorme alegria perceber que os realizadores, produtores, actores e demais envolvidos no processo de criação de um filme, continuam a elevar o nosso universo cultural às mais altas marés.
Depois de um 2019 preenchido por boas surpresas (mais filmes portugueses em sala com mais espectadores, regresso à competição no Festival de Veneza com A Herdade realizado por Tiago Guedes ou o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno atribuído a Vitalina Varela realizado por Pedro Costa), 2020 inicia-se da melhor maneira com a estreia de uma produção nacional na secção Encounters da 70ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, que acontece de 20 de fevereiro a 1 de março.
De acordo com a coordenação do festival esta é uma secção que pretende “apoiar novas vozes no cinema e dar mais espaço à diversidade de formas narrativas e documentais no programa oficial.”
“A Metamorfose dos Pássaros”, primeira longa-metragem escrita e realizada por Catarina Vasconcelos – produzida pela Primeira Idade – poderá ser vista no dia 28 de fevereiro e contou com apoios do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), da RTP e da Fundação Calouste Gubenkian, tendo os primeiros passos do seu desenvolvimento sido dados no âmbito da oficina Arché do Doclisboa e do programa de escrita Archidoc da escola de cinema parisiense La Fémis.
O filme propõe um mapeamento de recordações, uma reconstrução tão rigorosa quanto imaginada das histórias da família de Catarina e parte de um sentimento de encontro com o seu pai, num lugar de “ausência da palavra mãe”, consequência de duas mortes prematuras.
Poderíamos dizer que se trata de um filme sobre o percurso dos avós da realizadora, mas Catarina explica que é mais do que isso: “(…) é sobre a mãe do meu pai. A minha mãe. As mães. As mães das mães. Mas também acerca de um determinado período histórico que eu não vivi: um período tão distinto daquele que vivemos hoje em dia, que temos o dever de não esquecer” – “É um grande privilégio viver em Liberdade”, acrescenta.
Entre puzzles de lembranças, confronto de angústias intemporais e preservação das preciosidades da história desta família, A Metamorfose dos Pássaros “é uma casa para os fantasmas e as suas memórias.”
Depois de Metáfora ou Tristeza Virada do Avesso (que venceu em 2014 o prémio de Melhor Curta no Cinema du Réel, histórico festival de cinema documental em Paris) esta é a proposta de Catarina Vasconcelos que nos relembra a vitalidade criativa nacional e a importância que esta assume na vida de um povo e de um país.
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