Cultura

Mulheres

Sobre o nome Maria

Três Marias, três mulheres, três escritoras, juntaram- -se em Maio de 71 e resolveram escrever um livro que desse voz às mulheres deste país, libertando-as da condição subserviente e de silêncio a que a decência e costumes condenavam.

Foto: José Frade

Depois de três dias nas prateleiras, o conteúdo “insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”, corajosamente editado pela Maria-Natália, é recolhido e destruído. As autoras são levadas a tribunal. Enquanto isso, três exemplares chegam clandestinamente a Paris, às mãos de Maria- -Simone, Maria-Marguerite e Maria-Christiane, dando origem a uma onda de protestos que percorre a Europa e os Estados Unidos. É a primeira causa feminista com expressão internacional. Poucos dias depois do derrube da ditadura, as três Marias são finalmente absolvidas – Era “o fim do escândalo”.

A história dessa audácia é contada no percurso construído pela Maria-Rita e pela Maria-Joana na exposição, “Mulheres e Resistência – Novas Cartas Portuguesas e Sobre o nome Maria Outras Lutas”, patente no Museu do Aljube Resistência e Liberdade. Abrimos o livro para encontrar a carta de Maria à sua patroa, desculpando-se do cansaço e da fraca saúde, resultado das agressões de um marido diferente regressado da guerra, do trabalho sem folgas ou tempo para lamúrias. A de António para a menina Maria, a servir em Lisboa, rogando-lhe que fosse sua madrinha de guerra e lhe aliviasse a solidão. Ou a de Maria-sem-nome, abandonada no chão, inchando e sangrando, apesar de lhe cozer as batatas, lhe tratar da roupa, lhe parir os seis filhos que ele lhe fez. São histórias de pobreza, de sujeição e sacrifício.

A exposição temporária Mulheres e Resistência – Novas Cartas Portuguesas e outras lutas, com curadoria de Rita Rato e Joana Alves, pode ser visitada no Museu do Aljube Resistência e Liberdade até 31 de Dezembro de 2021

O momento da absolvição não lhes devolveu a justiça. Uma curiosa entrevista, gravada apenas dias após o veredicto, mostra-nos um entrevistador a aventurar duas ou três novas acusações. A de que o livro não teria propriamente “a linguagem das coisas simples, que chega às pessoas”. A de que o livro seria até “um bocado chato”. Maria-Velho responde-lhe com o desinteresse em tornar as coisas simples e a vontade de tornar-nos capazes. Já Maria-Isabel aponta a estrutura social vigente como a principal culpada pela suposta inacessibilidade do texto. Maria-Teresa é mais directa: “És o quarto homem que me diz que o livro é chato e não o conseguiu ler até ao fim (…) nenhuma mulher diz isso, antes pelo contrário. Todas as mulheres o têm entendido e têm lido até, digamos, avidamente”.

Foi essa inquietação, e a de muitas outras mulheres que nunca baixaram os braços desde o cair da longa noite do fascismo, que seguiu levantando das sombras as histórias das Marias das cartas, lhes deu identidade e corpo e lhes somou a voz de outras vozes com elas. A exposição revela estas batalhas, lembrando que por elas prossegue o caminho da resistência, pela afirmação da igualdade, da justiça e da liberdade, na casa, na família, no trabalho, na comunidade, na política. Até que todas as vozes possam ser ouvidas, com a clareza a que têm direito.

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