O Sol jamais interrompe a sua rotação e marcamos por ela a passagem do tempo – a cada ano um aniversário, uma constatação possível do caminho traçado quotidianamente na construção do humano que somos. E como assim o é, inevitavelmente, para todos, também o foi para Gal Costa que contou neste verão com o finalização da 75ª rotação na sua vida. Uma vida de riquezas muito particulares, disso, ninguém poderá duvidar.
Maria das Graças surgiu no mundo a 26 de Setembro de 1945 em Salvador da Bahia. Trabalhava como balconista numa loja de discos quando conheceu Caetano Veloso em 1963. Esta amizade fez com que logo no ano seguinte participasse no espectáculo colectivo Nós, Por exemplo, não só ao lado de Caetano mas também de Gilberto Gil, Maria Bethânia e Tom Zé.
Integrante incontornável da Tropicália (ou movimento tropicalista), que surge sob a influência de várias correntes artísticas de vanguarda e da cultura pop brasileira e estrangeira (como o rock ‘n’ roll, o concretismo ou a antropofagia) e mesclava manifestações tradicionais da cultura do país com inovações estéticas radicais. Apesar de ter feito da música o seu lugar de conforto, o movimento passou pelas artes plásticas (sobretudo na figura de Hélio Oiticica), pelo cinema (influenciando o cinema novo de Gláuber Rocha) e pelo teatro (nas peças anárquicas de José Celso Corrêa) e, pondo os pontos nos i’s, serviu sobretudo para dizer o que não se podia dizer num confronto com a mão pesada da ditadura militar.
Reivindicativos da possibilidade de dizer e agitadores das fronteiras do impedimento gratuito e claustrofóbico, assim se formou uma turma de gente interessada em contribuir para a reversão do cenário ditatorial. “Fazíamos da praia território livre para tomar ácidos e trepar o diabo. Conversávamos ao som de Jimi Hendrix, Janis Joplin, Beatles, Rolling Stones, Pink Floyd, éramos desinquietos e desassossegados”. Ao lado de Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil faz nascer os Doces Bárbaros que conhecem o seu fim com o exílio de Gilberto e Caetano em Londres – ao qual Gal não se junta por não ter, afirmou, meios para subsistir.
Gal assumiu rapidamente um papel de libertação simbólica de um público maioritariamente jovem: umbigo de fora, pés no chão, cantava a sua raiva, uma raiva da época. Trazia no corpo um diálogo constante entre uma louvação à cultura popular brasileira e à rebeldia que faz perguntas e espera do mundo respostas.
Aplicou a sua combatividade sobretudo na libertação estética, no uso do corpo como manifesto. Cabelo solto e selvagem, batom vermelho, erotismo e alegria. Assumiu a dianteira de cruzar sem medo as raízes brasileiras no feminino e as fronteiras da vivência da sexualidade e da sensualidade.
Na década de 70, marcada pelo encontro de um tom mais popular, Gal assume uma imagem mais brejeira e carnavalesca entre frevos e marchas, um axé ainda assim muito próprio. Anos 80 preenchidos por baladas românticas, ao lado de novos e incontornáveis parceiros como Tim Maia; e um fecho de século desinquieto, entre álbuns como O Sorriso do Gato de Alice e um retorno às suas origens bossa-novistas com um álbum inteiramente dedicado ao repertório de Tom Jobim – que descreveu como “uma reminiscência da Gracinha, a menina baiana que decidiu ser cantora ao ouvir João Gilberto”.
Caetano Veloso descreveu a poderosa felina na série O nome dela é Gal enquanto um sopro de surpresa, “um João Gilberto de saias”. “Quando pensamos em fazer uma coisa extrovertida, ela foi a mais extrovertida de todos – trata-se da presença feminina de palco mais transgressora e poderosa do Brasil”.