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Cipriano Dourado: O abandono do idealismo

Sobre a mesa de trabalho as grafites dispostas. À mão de trazerem ideias pela minúscula diferença de cor entre si. O preto mais preto que talvez usasse para cavar os cansaços no olhar daquelas mulheres em busca do arroz. O preto seguinte, menos preto mas ainda tão preto, para sombrear nas mãos a enxada. E por aí adiante até aos parcos apontamentos vermelhos, corajosos gritos presos no papel, gravados na tábua, postos sobre a pedra… –

Assim se poderiam convocar memórias de Cipriano Dourado. Uma grafite, um cinzel, uma mão que os segura com uma firmeza tamanha que seria o traço a decidir o seu percurso. Jamais a mão cederia à sua própria fragilidade, à capacidade finita do nervo permanecer quieto, à tentação de abrilhantar a realidade. O traço, senhor de si, fiel àquilo que veriam os olhos, figura de fidelidade à memória, à dureza, à condição do quotidiano, à revolta contida – traço que diz até ao fim do que há a ser dito. Um traço que acompanhou o abandono do idealismo no olhar artístico e iluminou o homem comum, interessou-se pela vida dos operários, pelo escrutínio das injustiças, pela análise do modelo social vigente, sem lirismos.

Cipriano Dourado, inicialmente auto-didata, começa a trabalhar como desenhador-litógrafo alguns anos antes de frequentar o curso nocturno da Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1939, com 18 anos. Os saberes que adquire nesta fase transformam-no num precoce militante do rigor operário do trabalho. 

Depois de algumas exposições colectivas, arranca, em 1947, em viagem pela Europa, num intento simultâneo de actualização técnica e colecção de inspirações que termina em 1949 em Paris, com um estágio na prestigiada Academia Livre Grande Chaumière. O avanço da sua actividade artística consubstanciou-se num crescente comprometimento ideológico e actividade política – antifascista convicto, materializa a sua certeza revolucionária tornando-se militante do Partido Comunista Português, o que lhe permitiu adensar, até ao final dos seus dias, agitação e influência nos meios artísticos.

Em 53 integra um colectivo com Alves Redol, Júlio Pomar, Lima de Freitas e António Alfredo, que se propõe a acompanhar o quotidiano das jornadas de trabalho nos arrozais ribatejanos. Do contacto com os trabalhadores, a sua vida, as suas condições de trabalho, surge um importante conjunto de obras que viriam a apelidar a experiência – o Ciclo do Arroz. 

As mulheres e a terra são presença constante nos trabalhos de Cipriano – é através deles que inscreve nos seus desenhos, litografias e ilustrações a vitalidade da sua militância, da sua confiança na vida, dedicação aos amigos, aos camaradas, aos companheiros de trabalho e ofício – jamais refém de elogios ou ambições carreiristas.

Funda a Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses em 1956 e participa em todas as exposições itinerantes de gravura portuguesa organizadas pela mesma a partir desse ano. Trabalhou também como ilustrador, nomeadamente de prestigiados livros de poesia e prosa, dos quais destacamos A Paz Inteira, de Armindo Rodrigues; Serranos, de Mário Braga; Sete Odes do Canto Comum, de Orlando da Costa (apreendido pela PIDE no prelo); O Livro das Mil e Uma Noites e 20 Poemas de Amor e uma Canção Desesperada, de Pablo Neruda; Canções para a Primavera, de José Carlos de Vasconcelos; O Amante de Lady Chaterley, de D. H. Laurence.

Além de todos os preciosos contributos colaborou ainda com publicações periódicas como a Vértice, Seara Nova, Colóquio-Letras e Cassiopeia.

Se ainda estivesse entre nós, teria completado cem anos em Fevereiro.

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