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O Prazer

Este foi um Março diferente, Abril também o será, provavelmente. Os recentes eventos trouxeram muitos de nós para o interior do espaço doméstico e esse confronto com as paredes de casa pode ter-nos remetido para uma visita atenta a conteúdos do passado que por cá andavam desorganizadamente organizados.

Le Plaisir (O Prazer) realizado por Max Ophüls, de 1952.

Na drástica redução de rostos humanos à nossa volta, reencontramo-nos com filmes e livros, rabiscos e cadernos, vinis, cd’s, e as possibilidades infinitas que ficam à distância de um click. Partilhá-los pode bem ser o melhor recurso de redução desta distância imposta e atrevo-me por isso, a fazê-lo.

Quando nos colocamos frente a um filme estabelecemos um dos mais reais paralelismos com a condição do humano frente à vida. Estamos disponíveis para o por vir, queremos conhecer as personagens, perceber onde se movem, de onde vieram – por vezes ligamo-nos a elas com uma profundidade tal, que seria estranha perante qualquer outra situação do universo do não-real. Estamos disponíveis, atentos, prontos para o desconhecido, expostos à probabilidade de sermos tocados, aceitantes das consequências possivelmente irreversíveis que determinado filme possa ter sobre a vida que continuará depois de o vermos.

Por princípio vejo filmes no cinema. Mas, se por motivo de grande infortúnio, nos virmos perante um pequeno ecrã do computador e se instalar a indecisão sobre qual deve ser, pode aplicar-se um golpe normalmente fatal: escolher um clássico.

Quando nos colocamos frente a um filme estabelecemos um dos mais reais paralelismos com a condição do humano frente à vida.

Foi precisamente este o cenário que me pôs frente-a-frente com Le Plaisir (O Prazer) realizado por Max Ophüls, de 1952, a preto e branco.

Não descreverei exaustivamente o filme porque estaria a cometer a terrível injustiça de privar-vos da experiência total que nele, através dele, podem ter. Mas na tentativa de aguçar a vontade penso ser possível legendá-lo como um mergulho profundo na alma e no hábito dos humanos com uma fresca aparência de superficialidade.

Aos meus olhos, Ophüls consegue elevar a sua adaptação de três contos de Guy de Maupassant ao expoente supremo da beleza justamente por expor a natureza contraditória e falível das pessoas através de um incrível sentido de humor.

A primeira história marca o compasso. Instala-se a festa, dos olhos às partículas mais minúsculas do organismo, e conquistada a nossa atenção somos logo confrontados com o primeiro exemplo de contradição, dú- vida e fragilidade dos Homens – a passagem da vida e o envelhecimento, a festa que continua para outros mas não para nós, os que envelhecemos entretanto. Ophüls consegue que este seja um confronto feliz – ficamos felizes porque a festa continuou.

Se a vida alegre e rápida continuou, pode iniciar-se a segunda história, temos entusiasmo para vê-la. Novamente Ophüls nivela com igualdade este mundo tão desigual, sentando lado-a-lado homens que só se sentariam com igualdade nestas mesmas circunstâncias – a circunstância da carne, do desejo e da satisfação. O grupo de prostitutas que alenta os destinos da cidade deixou de portas fechadas a sua casa – o motivo? “por motivo de primeira-comunhão” – não são palavras minhas, foram as que deixaram escritas à porta.

Todas as peripécias de absoluta beleza culminam no momento dessa cerimónia, no qual as lágrimas de um grupo dessas sumamente exploradas mulheres, contagia todos os presentes na igreja (independentemente da sua origem de classe) e se cria assim, com um traço impressionista, o apogeu da comunhão e da partilha entre iguais.

Ophüls confronta primeiro “o prazer e o amor”, depois o “prazer e a pureza” para terminar com o confronto entre “o prazer e a morte”.

A terceira e rápida história aparece como um círculo dentro de um círculo. O limite do amor, do não-amor e do reaparecimento do amor, o fim que se faz princípio – a morte que planta mais do que ceifa.

“Maria, acabar o texto com morte, pode deixar os leitores tristes…” – sim, posso responder-vos com a última frase do filme – “a felicidade não é alegre”.

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