Artista de importância indiscutível, Júlio Pomar morreu há dois anos no dia 22 de maio, aos 92 anos. Sempre ativo a pintar, quando concedeu esta entrevista estava a trabalhar numa encomenda – «um retrato de família» – que não chegou a terminar. A sua obra atravessa toda a História portuguesa do século XX. Esta é uma das últimas entrevistas em que fala de tudo, sem cerimónias. Para descobrir mais, o Atelier – Museu Júlio Pomar apresenta a exposição “Em torno do acervo II”, até Setembro de 2020, colocando algumas das suas obras em retrospectiva.
O seu livro Da Cegueira dos Pintores, de 1986, permitiu-me descobrir uma série de etapas no pensamento do criador e do pintor. Não resisto a começar por aqui, é incontornável, uma vez que é uma sugestão vinda do seu livro: o que é que acha de si próprio?
Bom, o que é que lhe posso dizer? Posso dizer-lhe, e não vou falhar muito à verdade, que me sinto muito como um bichinho, uma minhoca que se descobriu a chegar à superfície e que não sabe muito bem aquilo que está a ver nem como perguntar. No que está a ver está cheio de indecisões e tem a impressão de que cada vez que põe o pé num degrau vê esse degrau abrir-se. Ora o problema é que se esta posição inicialmente pode parecer perturbante, ou dececionante, uma espécie de pergunta sem resposta, e eu não quero usar aqui a palavra «maturidade», mas um certo frequentar da resposta ou das pretensas respostas conduzem a uma posição, ou parecem conduzir, que não é dececionante, por não haver uma resposta concreta. E aqui estamos a tropeçar nas palavras. Uma coisa que me parece fundamental ao longo do nosso trabalho é questionar a pergunta, não no sentido de encontrar uma resposta mas numa aproximação, num tatear. Isto dentro duma sensação de mobilidade, de chão que mexe, que a princípio pode ser perturbadora ou dececionante, como já disse, mas, com a continuidade, esse sentir-se o chão a mexer passa a ser um estímulo.
A ideia fundamental do seu percurso que me surge é a de um constante risco em toda a sua extensão. Acha que foi, é e será continuamente um risco?
Sim, sim, sim, a própria ambiguidade, a riqueza da palavra «risco».
Pensa que esse risco, esse permanente desafio cria de certo modo a própria chama do sagrado? É isso que distingue as pessoas que sabem onde estão e para onde querem ir?
Claro. Isso acontece quase na totalidade sem que as pessoas tenham consciência disso. No fundo, as pessoas têm necessidade de escamotear as coisas, fugir à realidade das coisas. A possibilidade de viver é realmente escamotear, ou esquecer por momentos. E aqui as palavras começam a ter inutilidade. Mas o que é útil e não é inútil? Começa a ser perigoso.
Depois de fazer o retrato do Norton de Matos foi afastado da escola onde lecionava. Foi um risco que sabia necessário correr?
A liberdade assusta, evidentemente. Digamos que o touro sente a necessidade do redondel. A liberdade tem sempre um preço.
A liberdade é uma realidade imutável? Ou sente que a liberdade mudou ao longo da sua vida?
Julgo que nunca tive uma ideia muito precisa acerca do que era liberdade, tal como nunca fui levado a aceitar automaticamente os limites e as condicionantes que a sociedade impunha. O desregrar dessas convenções para mim era uma possibilidade sempre, ou quase sempre não condenada. O que me parece essencial é sabermos o que nós entendemos por liberdade, e o entendimento deste sentimento só pode ser dado através de limites. Ora tais limites já parecem, em princípio, implícitos na ideia de liberdade. Portanto, a liberdade é uma utopia, mas não gosto da palavra. Eu penso que não é de maneira nenhuma um corpo fixo, ela tende a ser definida em termos de leis, artigos que regem a sociedade, que por definição são limitações, são o contrário da liberdade. E há aqui uma contradição interna de que a maior parte das pessoas não se dá conta. A liberdade é extremamente difícil de ser precisada e muito perigosa, no sentido em que estamos habituados a entender as coisas através da sua limitação. A definição é uma limitação.
Por outro lado, hoje os limites da liberdade estão mais esfumados. Por exemplo, não se percebe onde está o conflito, ou a energia que poderá vir do conflito com esses limites impostos. Haverá uma energia perdida?
Com certeza, não sei se essa ideia que temos de aproveitar os limites, e isto é uma pergunta, não resultará duma dificuldade de fazermos uma leitura do panorama, de estarmos demasiadamente próximos? Pode ser o conceito de liberdade que dilatou… E eu pergunto-me se realmente será assim ou se isso se passa sobretudo na aparência, na busca do carácter essencial da liberdade? A matéria é muito delicada e pouco abordada. A ideia geral é que hoje temos muito mais liberdade do que tiveram os nossos pais ou avós, isso é verdade, mas em que medida é que isso é mais do que uma aparência? Isto pode ser um comentário à velho do Restelo, atenção…
Com a eleição de Donald Trump passámos a um discurso mitológico e infantil, e somos forçados a conviver com notícias falsas, negação da próxima história, etc. Será que não vemos ou não queremos ver? É uma crise da representação democrática ou precisamente o oposto?
Eu espero que isto seja um acordar sobre o jogo das aparências. É um facto que muitas afirmações do senhor são de algum ponto de vista do gosto popular. Não há dúvidas de que as ideias sobre a liberdade da mulher são conceitos praticamente de elites: na rua, na profunda vida do dia a dia, nós sabemos o que se passa. Não há, oxalá que me engane, assim uma modificação tão evidente como parece haver num circuito limitado: no país profundo a situação é igual, não mudou totalmente. Tenho a impressão de que isso tem a vantagem de nos lembrar desta situação.
Como é que lida com o erro?
Estou habituado a ele. Se não estivesse habituado ao erro estava tramado! [Risos.]
Depois da série das «corridas de cavalos», quando está no Algarve, há uma série de obras destruídas. Era insatisfação com o processo ou com o objeto final?
É que o resultado era inconclusivo, não dava para coisa nenhuma. É como um cavalo que escavasse o chão em vez de formar o passo.
Escreve a certo momento que o acaso é dos materiais mais preciosos, que pode fazer despontar uma paixão, fazer ignição, que é uma coisa que o desperta e o leva à obsessão…
No fundo, o acaso é a capacidade de ver. O acaso está no próprio, não existe sem a possibilidade do seu encontro. Um encontro é um encontro, a descoberta pode ter um peso extraordinário.
A arte no espaço público é uma coisa que lhe interessa? Lembro-me do exemplo da estação ferroviária de Corroios…
Ah, eu gostei muito desse trabalho. Sim, sim, essa estação foi das coisas mais pertinentes que me deram a fazer… Aí, sem dúvida, empenhei-me muito, foi um trabalho que me entusiasmou muito…
Outro exemplo curioso é o nosso passaporte com Fernando Pessoa em desenhos seus…
A ideia foi do designer que fez o passaporte, o Henrique Cayatte: desenhar o passaporte e enchê-lo com os meus bonecos.
Falando agora de museus e do acesso às obras originais que sei ser algo que o preocupa. Haverá hoje uma grande mudança em relação a este acesso?
Bom, sou suspeito nessa história porque eu sou um rato de museus. Eu gosto muito dos museus. Mas sou das pessoas que veem, detesto museus chatos, cheios de quinquilharia, que contam a vida da Dona Maria II, que mostram as cuecas e as jóias, para isso eu estou-me nas tintas. Por um lado, o museu é uma possibilidade de oferta, por outro lado é uma capa que é ajeitada, e que hoje com certos hábitos criados se torna quase impossível de utilizar, como os Louvres, etc., são hoje inutilizáveis… porque agora têm que ser percorridos com os audioguias, com telemóveis… As pessoas nem olham, partilham tudo mas nem olham para o conteúdo daquele aparelho. Há um empobrecimento daquilo que se recebe pela vista, e que é reduzido a coeficientes extremamente limitados. Nos países que são ricos, por exemplo a Itália, é relativamente fácil ter coisas para ver, há uns grandes museus, mas é fácil encontrar outros museus talvez com menos pontos mas igualmente interessantes. É uma maravilha.
Estou a ver ali um retrato de Vitorino [Maestro Vitorino de Almeida] , sei que são amigos. Que influência é que teve e tem a música no seu trabalho?
Tenho a certeza de que a música, por razões que me falta averiguar, é a arte de que faço mais esforço para me aproximar. E aquela que tenho mais dificuldade em entender. Isto por uma razão muito simples, acho eu: quiseram ensinar-me piano quando eu tinha sete anos. É uma razão demasiado simples! [Risos.] Deve haver uma série de incapacitações, mas desde que me conheço continuo a fazer este esforço. É a arte que representa para mim um grande esforço para retirar prazer, para compreender. Não tenho o entendimento que suponho ter das outras, há um grande bloqueio. Claro que nunca fiz grandes progressos no piano, uns dois anos no máximo, para mim era um exercício penoso… O facto de ser literalmente obrigado a estudar piano foi realmente a questão, foi isso que me separou da música. Eu tiro prazer de ouvir música, claro, mas exige-me um esforço suplementar, o que é um péssimo sinal. Tenho de fazer um grande esforço de concentração.
Depois do problema de saúde que teve, pintou obras de uma escala imponente, numa série com uma pujança incrível. Sentiu a necessidade de obras dessa dimensão?
Sim, reconheço que há o problema da morte. O que é que posso dizer? Isto é muito arriscado, mas tenho a impressão de que não me assusta. Não há outra alternativa. E, portanto, não vale a pena a sofrer por isso. Não sei se, quando o problema se puser concretamente, eu vou reagir desta mesma maneira, com este desprendimento. Nestas condições não me dá uma angústia muito grande. Quanto muito, uma sensação de repouso. Mas tudo isto, atenção, interrogado. Porque se levar uma martelada na cabeça, não sei exatamente como irei reagir, é natural que não reaja da mesma maneira do que estando assim, a frio, a pensar na história. É uma questão que só quando se chega lá é que se sabe.
Sentiu uma energia diferente depois desse período em que esteve mais debilitado?
Sim, mas hoje trabalho muito menos e sei que não vale a pena insistir. Isto é como o cão que se deita… E não fico magoado, não me sinto triste… Até agora. As coisas podem mudar. Não somos tão totalmente diferentes uns dos outros.