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“Triste é no Outono descobrir que era o Verão a única estação

O verso que dá título a este pequeno texto de memória e exaltação a Jorge Silva Melo é de Ruy Belo e foi usado por Jorge, no seu filme “Coitado
do Jorge”, que resume quase na perfeição a permanente marca de inquietação pela e com a vida, que colocava nas várias obras que deixou.

Perder fisicamente Jorge Silva Melo é perder um dos alicerces mais sólidos do teatro português

Jorge Silva Melo nasceu em Angola, na antiga cidade de Silva Porto, voltando com a família a Lisboa no início da adolescência onde se viriam a fixar. Por mais viajante que se tornasse no futuro, Lisboa iria tornar-se um dos palcos principais da vida de Jorge Silva Melo, tal como Jorge Silva Melo viria a marcar profundamente a história da vida desta cidade e do país que a integra. Encenador, argumentista, realizador, dramaturgo, director artístico, actor, tradutor, professor, autor, cronista, professor, espectador, leitor e crítico. Era crítico, inquieto, observador e por isso desde cedo na sua infância começou a perceber a necessidade de ser outro. Esta linha de percorrer e criar as várias possibilidades de vida que se pode ter numa vida, consequência das escolhas que cada um de nós faz, foi um fio condutor em quase tudo o que deixou criado e seria um dos seus maiores motes à criação. Em 1972, com Luís Miguel Cintra, funda o Teatro da Cornucópia ficando este marco como um dos símbolos mais significativos do e para o teatro a nível nacional. Saiu de Portugal várias vezes com bolsas da Gulbenkian tendo sido um viajante nato, passando por locais como Berlim e Milão mas regressando sempre ao país que o continuava a inquietar acima de tudo. Em 1995 funda os Artistas Unidos que liga para sempre o nome de Jorge Silva Melo á descoberta e formação de novos actores, actrizes e a uma marca de criação, produção e culto do teatro profunda tanto na cidade de Lisboa, como a nível nacional.

“Jorge Silva Melo deve ser recordado como alguém que voltava sempre à necessidade de criar e de continuar a arte e o teatro.”

Deixou uma vasta lista de filmes onde teve os mais diferentes papéis desde realizador, produtor, argumentista, actor, a assistente. Publicou peças de teatro, um libreto de ópera e livros, sendo um deles a espécie de autobiografia em apontamentos e recordações reunidos ao longo de 50 anos, num único sítio – “A mesa está posta”, editado pelas edições Cotovia, em 2019. Dizia adorar multidões mas não saber se lhes pertencia. Gostava da sensação de vaguear pelo mundo e de lhe ser um vagabundo. Jorge Silva Melo deve ser recordado como alguém que voltava sempre à necessidade de criar e de continuar a arte e o teatro. Desde cedo que se começou a ver como professor tendo esta necessidade de guiar, se ver como outro e desta forma regressava sempre dos passeios que gostava de fazer sozinho, para a criação colectiva. A resistência e percepção de criar e preservar memória, marcou a sua vida e sem se conseguir ou querer fazer uma divisão: a sua vida marcou grande parte do que criou e como criou. Perder fisicamente Jorge Silva Melo é perder um dos alicerces mais sólidos do teatro português, sabendo que a obra deixada será um outro alicerce que não se poderá deixar morrer. A vida de Jorge foi dedicada à cultura. A sua insistência e permanência deixaram marcos de valores importantíssimos em toda a estrutura cultural do país mas nunca foram fáceis. O nome e legado de Jorge Silva Melo precisam de ser vistos e continuados com a importância do património que nos são, que criou e que nos foi deixado. Dar dignidade à cultura e a quem trabalha nela, é dar ferramentas para a preservação e continuidade da liberdade de um povo inteiro. Continuar a inquietação de Jorge Silva Melo é dar passos para se aprender a dançar quando o próprio disse sempre que nunca chegou a saber dançar. Continuar um professor que que se sentia fora do tom e que achava que uma vida não era suficiente para viver as tantas vidas que cabiam nela, é saber que uma biblioteca nunca morre por mais que a queiram queimar. A cultura permanece porque foi escrita, porque foi transmitida oralmente, porque foi sorrida, porque esteve no palco e à volta dele, porque esteve na tela, porque é feita para ser um prolongamento de quem a pensou e lhe deu forma.

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