Os ensaios acontecem quatro horas antes da estreia da primeira leitura da sétima série do “Esta Noite GRITA-SE”, iniciativa da Companhia Cepa Torta que acontece até Dezembro vários espaços culturais de Lisboa (e Faro). O texto é “Tatuagem”, da dramaturga alemã Dea Loher. O grupo criativo, formado em 1999, faz questão de frisar que são leituras interpretadas, e não encenadas. Os actores mudam consoante a peça, mantendo-se Filipe Abreu, um dos mentores do projecto, como narrador. Estamos numa sala da biblioteca do Palácio Galveias.
Esta Noite GRITA-SE dá a conhecer obras teatrais, salientando sobretudo a palavra e aquilo os actores trazem através dela, com a sua voz e o corpo.
Nos ensaios
Os actores começam a leitura corrida da peça. João Lagarto dá voz a Wolf do Forno, figura controversa de um texto que aborda a violência sexual e o incesto. Júlia dos cães (Rita Durão) cala os abusos do marido a uma das filhas, Anita. Ana Cris, a actriz que a interpreta, transmite um lado de revolta e agressividade, resultado do ambiente doentio. A irmã mais nova, Lulu (Beatriz Godinho), anda com vários homens, não se comprometendo com nenhum. Neste universo disfuncional, aparece a personagem de Paul (Mário Coelho), que traz esperança a Anita para mudar de vida. É preciso abandonar aquilo que o pai perpetua. Anita vai viver vida com Paul, mas acaba por não conseguir sair do ciclo vicioso em que cresceu. Entretanto, Lulu é agora a presa de Wolf.
Durante o ensaio, Filipe Abreu levanta-se para escutar em várias zonas da plateia. É preciso perceber como vão ser escutamos. No final, partilha as anotações que foi tirando com os colegas. Os outros actores escutam, e dão as suas sugestões. Tudo fica alinhavado para a estreia, que acontece daí a um par de hora. É um ambiente descontraído e de simultânea concentração sobre as personagens e os sentimentos de cada uma delas, momento a momento. Trata-se de aprofundar as palavras que Dea Loher escreveu. Afinal é esse o trabalho do actor.
O brilho que só o público traz
Perto da hora marcada, os actores, retomam os seus lugares. Dois minutos antes do arranque, Inês Achando, da produção, diz, referindo-se às pessoas que esperam para entar, “devem ser à volta de vinte”. “Divirtam-se o mais que puderem. É (um texto) sádico e negro.”, acrescenta Miguel Abreu. “Vamos começar”, termina Inês, e sai para ir buscar os espectadores.
Miguel Maia, director artístico da Cepa Torta, observa tudo numa fila no fundo da sala. À medida que os espectadores entram e se instalam, cresce o brilho nos olhos dos actores. São muitos mais do que vinte. Filipe Abreu apresenta a peça, as personagens e respectivos actores. Não se esquece do baterista Miguel Sobral Curado (que acompanha musicalmente a leitura), nem da intérprete de Linguagem Gestual Portuguesa (que traduz em simultâneo em gestos a palavra falada).
Tudo acontece como no ensaio, mas… com mais intensidade. À frente dos actores, ganham corpo aqueles que são o propósito destas leituras encenadas: os espectadores. No fundo, a razão de ser deste magnífico trabalho colectivo, que conta ainda Sónia Godinho (na fotografia), Beatriz Sousa (na produção executiva) e James Newitt (no registo audiovisual).
E tudo acontece como se fosse a primeira e a única vez.
A leitura termina, e o brilho do olhar de todos mantém: actores e as pessoas os foram ver e escutar.
Seguem-se leituras de outras obras dramatúrgicas, algumas pouco divulgados. A última será “Tanque”, de Sofia Perpétua, vencedora do Prémio Nova Dramaturgia de Autoria Feminina, que a Cepa Torta lança anualmente.
Vale a pena estarmos atentos ao “Esta Noite GRITA-SE”: a estes textos e autores (como (David Ives e George Tabori) e actores. E, sobretudo, ao trabalho comunitário que a Companhia Cepa Torta tem desenvolvido nas áreas do teatro, da formação e criação culturais. Autêntico serviço público para todos, e um pouco por todo o país.
