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Northern Soul: a dança das jovens

Ao longo da história da música popular foram as massas em movimento, na dança, que fizeram romper as definições culturais de estilos, essas idealizações estáticas que dificilmente suportam a exposição à realidade juvenil, sempre sequiosa de uma identidade num mundo que não sentem como seu. Mas para simplificar a comunicação, continuamos a usar hoje para descrever a insubmissa soul operária, explosiva e capaz de incendiar pistas de dança mais de 50 anos depois das suas gravações originais, um nome que ainda faz arder paixões, northern soul. Reza a lenda que o termo nasceu na loja de discos Soul City de Londres, nos inícios da década de 70. Para descrever o estilo de música que os fãs de futebol dos clubes do norte procuravam, quando visitavam Londres e a sua loja, o também jornalista David Godin sintetizou a preferência dessa sua clientela pela soul americana de meados de 60 numa insígnia que ainda hoje é sinónimo de paixão e comunhão, dançando noite fora, debaixo de grande música. Em Londres, se queres gerir uma loja de discos, tempo é dinheiro. E para que os seus empregados não se perdessem em sugestões dos últimos êxitos das listas de vendas americanas, Dave Godin resumia como northern soul aquela música negra e fortemente ritmada, altamente dançável e inspirada na estética musical da editora Motown, a famosa editora de Detroit. A fustigada capital da indústria automóvel norte- americana produziu sempre da melhor música popular e urbana do século XX. Devido às suas origens operárias e negra, a sua música tanto deve ao encanto das melodias como do ritmo, numa tradição musical que se estende ao longo do tempo até aos dias de hoje. Talvez não seja por isso tão improvável que, anos mais tarde, viesse a encontrar numa geração de “jovens almas rebeldes” das cidades industriais como Birmingham ou Manchester, o reavivar de uma fé pelos jovens operários brancos de um fenómeno musical que ainda hoje deixa as suas marcas na sub-cultura juvenil, alicerçado no poder da soul negra americana da década de 60 e no prazer da dança e da comunhão colectiva.

Nascia a northern soul. Um fenómeno que se precipitou quando os jovens operários das cidades industriais do norte de Inglaterra se apropriaram da música negra de 60 para dançar toda a noite depois de uma semana de trabalho. Baixos salários, desprezo social dos governos e instituições e uma busca de identidade própria arrastaram estes “zé ninguém” do Reino Unido para uma arena de sonhos transpirados numa noite de sábado, em piruetas acrobáticas, agressivos passos de dança, saltos e expressões dramáticos de indivíduos unidos por uma só fé, a música soul.

De um só golpe, criavam um movimento único, com a sua própria música, os seus códigos de indumentária, símbolos e locais próprios de culto, o clube, onde dançavam soul toda a noite e se identificavam através da dança, nos seus badgets de amor ao movimento e aos clubes que o representavam. Nascia ali a cultura do clube, a raiz do movimento clandestino da cultura rave das décadas de 80 e 90. A chamada “música negra”, expressão que reúne de forma simples, brutal e redutora toda a genealogia que vai de Louis Armstrong a James Brown e segue depois de Grandmaster Flash, Kool Herc e Afrika Bambaata até aos dias de hoje, seguiu como seria de esperar com as transformações tecnológicas, uma evolução mais ao menos linear. A northern soul, na década de 70, foi um fenómeno estranho que fez alterar a normalidade evolutiva dessa espécie musical. Mais uma vez, a realidade subverteu as regras e explodiu com as convenções, lançando as sementes para o fenómeno global da música de dança que ainda hoje arrasta milhões de jovens de todo o mundo e a criação da figura central do DJ no epicentro desse movimento. Os tempos mudaram e com ele também as danças, mas a fé no poder redentor e explosivo da música soul mantém-se.

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