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A Vida e a Obra de Olga Prats

Há uma diferença significativa entre um intérprete e um músico. A diferença não está, porém, no fator criativo, mas naquilo que o indivíduo carrega consigo e partilha com os outros no momento em que executa o seu instrumento. Em Portugal, durante o fascismo e logo após o 25 de Abril, tivemos a felicidade de ter gente que, consciente do seu privilégio, se disponibilizou para andar pelo país fora a democratizar o acesso à música.

Nos últimos 40 ou 50 anos, uma das figuras mais importantes na divulgação da música foi Olga Prats. A pianista que conviveu com Constança Capedeville e Fernando Lopes-Graça, a pianista que estimulou o conhecimento dos compositores portugueses e que deixou uma marca perene em todos os alunos que com ela se cruzaram no Conservatório Nacional e na Escola Superior de Música.

Nascida num contexto de privilégio, Prats confrontou-se com o dilema entre família e carreira, tal como algumas (poucas) mulheres do seu tempo, incluindo a sua mãe, que abdicara de uma carreira de concertista. Apesar de a sua vida íntima ter conhecido grandes sobressaltos, a pianista resistiu à desistência e persistiu na pedagogia, na divulgação e nos concursos e concertos.

Voltemos, assim, ao nosso ponto inicial: há uma diferença significativa entre um intérprete e um músico. Olga Prats foi uma divulgadora até no tipo de peças que selecionava para os seus concertos ou para os seus discos. Veja-se o caso da série de concertos à volta de Astor Piazzola ou o seu disco Piano Singular (2007), onde nos proporciona uma viagem de intertextualidades que nos irão deixar uma pista sobre a história da música nacional e internacional. Prats nega quase a ideia de erudição (essa ideia cada vez mais anacrónica de música erudita, de cultura classista), acreditando que a democratização do acesso à cultura passa por garantir que todos têm acesso aos mesmos códigos de interpretação.

Para quem nasce numa casa de músicos, sem ter de se preocupar com o acesso dos outros aos bens culturais, este é um gesto revolucionário. Olga Prats percorreu o país proporcionando concertos pedagógicos. A pianista deu verdadeiras aulas em diversos contextos e em circunstâncias muito diferentes, fosse a solo, fosse com o Opus Ensemble, conjunto de câmara que criou com o oboísta Bruno Pizzamiglio, a violetista Ana Bela Chaves e o contrabaixista Alejandro Erlich Oliva.

Para além da sua linha pedagógica, Olga Prats foi responsável pelo conhecimento mais profundo que temos hoje dos trabalhos dos compositores portugueses, tão desprezados pelos pares da artista. É ela a grande responsável pela recuperação do reportório de Constança Capedeville, por exemplo, mas não só. Ainda em 2021 havia lançado um disco de tributo a Joly Braga Santos, no qual nos aparece sem ostentação, sem virtuosismos desnecessários, cumprindo o papel de divulgadora e não de protagonista de uma história que não é sua. Também com Fernando Lopes-Graça fez um trabalho de grande impacto, dando um especial relevo às Heróicas e aos quartetos de cordas e piano.

Com a sua morte, é importante recordar uma geração generosa (de Lopes-Graça a Atalaya, passando por Victorino d’Almeida) que acreditou num país democratizado, a começar na sua cultura; um país onde a partilha do conhecimento é mais importante do que a ostentação de um conhecimento secreto e egoísta. Com Olga Prats aprendemos tanto sobre música como sobre divulgação e aprendemos, talvez, o mais fundamental de tudo: a responsabilidade que temos na construção de uma sociedade mais emancipada e livre onde não podemos ser meros intérpretes.

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