Luís Filipe Costa, a “voz que anunciou o 25 de Abril”, deixou-nos há pouco. Homem da rádio, da televisão e do cinema, fecundo inovador das formas de comunicar, não se limitou apenas a essas funções. A literatura portuguesa ficou a dever-lhe dois magníficos livros que penetram nesse ambiente circular de uma certa fauna da intelectualidade urbana, da geração anterior ao 25 de Abril.
Trata-se de dois livros raros pela argúcia, pela sensibilidade, pela destreza descritiva, pela inventiva abordagem do real, pelo novo e enxuto da linguagem, pela reinvenção vocabular e metafórica – A Borboleta na Gaiola e Agora e na Hora da Sua Morte.
Escrito em “lisboês” de fino traço, A Borboleta na Gaiola encena, ao estilo do realismo cinematográfico, tão caro ao realizador que Luís Filipe Costa foi, um olhar coevo sobre a fauna lisboeta de uma certa esquerda do início dos anos 1970, sobre esse esquivo, ululante espaço de todas as conjuras inconsequentes, dos gritos sem eco, do maldizer para espalhar os medos da noite enorme, o tédio e o negrume que a todos açoitava. Crónica sagaz de uma geração de verniz e cetim puído, embalando nos braços os livros proibidos que o Barata fornecia à socapa; que bebia as noites em botequins de margens líricas e mansas, tascas manhosas, bares da moda entre as Amoreiras e as franjas do Bairro Alto, no ano que antecedeu a Revolução. Turba que se inquieta, e aquieta, que discute Godard e Truffaut, malta das libertinagens sem lastro, dos teatros, dos livros, do cinema que se tentava fazer. Malta, como a define o autor, que se arrastava pela noite numa forma peculiar de querer gastar a vida e alicerçar a mudança. Vistosa, como a borboleta, esta gente não produz, porém, um único som que incomode verdadeiramente o poder. Isso é para os pássaros da madrugada, os autênticos revolucionários, que este romance aflora, dado que fechados em Caxias, Peniche ou calcorreando as ruas do exílio.
Em Agora e na Hora da Sua Morte, é o crime que abre a narrativa, que dá tom e substância a uma história ludo-policial das antigas. O texto apanha-nos logo na primeira página, com facadas, sangue e policias como mandam as normas. Mas o autor envia as normas para o recreio e deixa-nos pendurados uma caterva de páginas a percorrer a Lisboa nocturna dos finais dos anos 1980; a trazer-nos retratos deslassados, cruéis, memórias, desencantos, restos nostálgicos de júbilo e retraimento, as rugas de uma esquerda festiva (ou caviar?) que o autor já cronicara em Uma Borboleta na Gaiola. A escrita arguta de Luís Filipe Costa, percorre esse esquivo corpo, os lanhos de uma revolução a derruir.