A história, a nossa colectiva história, dos 48 anos sofridos, em grande parte do século XX, pelas gerações que viveram o fascismo de Salazar e Caetano, continua a ser, e bem, um território profícuo de inventariação ficcional. E, não já apenas pelas gerações que percorreram esses árduos tempos, mas por gerações mais jovens de escritores, sobretudo, escritoras, que sobre o estupor desses dias e do seu horror se vêm debruçando: Ana Margarida de Carvalho, Ana Cristina Silva e, recentemente, Rita Cruz com um poderosíssimo romance, estreia da autora nas árduas tarefas de escreviver.

Em No País do Silêncio, Rita Cruz percorrerá o que de mais trágico retemos desses tempos bárbaros, fazendo-o numa linguagem solta e límpida, despojada dos laivos de um discurso de hábitos e costumes, construindo uma história que ganha espessura e intencionalidade, transportando-nos para os territórios inquietantes e inquiridores do melhor do nosso neo-realismo, inventariando a sórdida realidade desses tempos.

Sabemos, através de contínuas e bem construídas mudanças temporais, que Eduardo, marido de Sílvia, está preso no Aljube, que foi barbaramente torturado pelos capangas da Pide.

O capítulo, Sem Retorno, no qual a autora descreve, com acutilante minúcia e realismo, as sevícias sofridas por Eduardo às mãos dos algozes, são de uma veracidade e capacidade descritivas raramente transpostas para a nossa actual literatura, nomeadamente a que tematiza este período da nossa história. A violência descritiva da barbárie, só encontra paralelo nos testemunhos que as próprias vítimas produziram. A realidade é um lugar cruel, avisa-nos a autora.

O fantástico que atravessa algumas passagens do romance, as premonições do padre, o assassínio de Rosalinda, António a sair do coma sem memória dos seus dias de revolta e medo. As fotografias que Eduardo enviava para o Manchester Guardian, fotografias «que moldavam a realidade» de um país pobre e silenciado.

Sabemos das greves dos trabalhadores rurais do Alentejo e Ribatejo, da emigração que começava a despovoar o país, a Guerra Colonial, as revoltas frustradas contra o regime: Norton de Matos, que desiste de enfrentar o ditador; Delgado; o caso Santa Maria; a revolta de Beja. O exílio onde, em Londres, se irá refugiar Eduardo até ao 25 de Abril.

País de silêncio e de morte onde, apesar de tudo há sempre sobreviventes de um massacre, diz-nos a autora, ao tempo e às circunstâncias, para nos contar. Um bom romance belíssimo e inesperado. Imperdível.

No país do silêncio, de Rita Cruz – edição página a página/2021

Artigos Relacionados