Cultura

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O tempo que passa e as Sopa de Pedra

Abro com cuidado a caixa de madeira. É certo que a relação com os objectos se tem alterado estruturalmente nos últimos anos e é hoje cada vez mais estreito o caminho que usamos para aceder à música, por exemplo. Já não precisamos do vinil, da cassete ou do cd para ouvir as músicas que compõem a passagem pelo dia – mas precisar nunca me pareceu um verbo simples de conjugar.

Eu preciso dos meus vinis, cassetes e cd’s porque mais do que as músicas que contêm são imprescindíveis à composição da arca do tesouro que teimo em construir ao meu redor. A ordem das músicas, a imagem na capa ou a fonte tipográfica escolhida, não são elementos casuais, e moldam eles mesmos a forma como se ouve o que se ouve.

Esta é uma caixa de madeira que abro com todo o cuidado porque dentro tem o único disco editado até à data pelas Sopa de Pedra, grupo português de cantares e encantamentos, de hoje e de outros tempos.
São mulheres, dez, amigas, são família. Cantam desde que eram pequeninas.

Coleccionam cantigas guardadas em lugares diferentes: desde a Antologia da música regional portuguesa (de Fernando Lopes Graça e Michel Giacometti), da série da RTP Povo que canta (igualmente de Giacometti e de Alfredo Tropa), das recolhas de Domingos Morais, dos Almanaque, dos GAC e de vários e preciosos cantautores portugueses como José Afonso, José Mário Branco, Amélia Muge, João Lóio e outros. Cantam de ouvido mas também compõem, com uma estranha sabedoria considerando a idade tenra dos seus corpos.

Este é o fosso incontornável com que nos deparamos frente ao trabalho destas mulheres – cantam palavras de tempos que já passaram, fazendo deles pão quentinho para o dia de hoje. Esta capacidade impressionante leva-nos a explorar territórios do país, territórios dos sentidos, do trabalho, do grito do povo, do sussurro dos animais pequenos. 

Até agora editaram apenas este disco que ao longe já se ouvia e que seguro entre as mãos, dentro desta caixa de madeira crua. 

O disco traz dentro onze cantigas que ouvimos de uma assentada e que, chegadas ao fim, voltamos a fazer soar numa curiosa sensação de vida com banda sonora. Cantigas com tamanhos interiores de gente, cantigas companhia, cantigas desafio, cantigas para abraçar um amigo, cantigas para rir com ele, cantigas que começam o dia e que o acabam, porque têm uma meiguice solar e lunar.

Podemos comprar o álbum através das plataformas digitais e na loja online da turbina mas, como os objectos têm os seus desígnios, nada melhor do que poder segurar esta caixa, tentar acompanhar os cantares com os cartões que trazem as letras, e sentir o tesouro materializado.

Por estes dias as Sopa de Pedra têm semeado um disco de vinil que surge de uma parceria com a Oficina Arara e que dará frutos breves – do claro ao breu.

“As composições deste disco são o resultado da musicalização de narrativas visuais propostas por artistas colaboradores – Artur Campos e coletivo Oficina Arara. As peças originadas complementam-se, como a noite e o dia, e os ambientes musicais deambulam entre contrastes: temas diurnos e luminosos – as mãos, os frutos, as estações, a ligação à terra e aos ciclos; e temas noturnos e obscuros – medos e superstições, tempestades, o fogo e as festas pagãs. Os textos provêm de poesia que assenta no imaginário popular português, explorando esta referência por meio da palavra, da textura do som, do silêncio, o que juntamente com a exploração do espectro sonoro e instrumental da voz levou à criação de sonoridades plásticas não habituais em Sopa de Pedra” – disse-nos Inês Campos, uma das dez mulheres.

Este momento social desafiante, que tem tido impactos pesados no quotidiano das personagens da nossa vida cultural e artística, relembra-nos a importância de procurarmos as preciosidades que nos fazem ser gente, de nos cultivarmos pelo lado de dentro e de nos aproximarmos do desafio superior lançado por Karl Marx nos Manuscritos Económico-Filosóficos, o da “sociedade plenamente constituída que produz o homem em toda a plenitude do seu ser, o homem rico dotado de todos os sentidos, como uma realidade permanente”.

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