Cultura

Arte urbana

Jorit, o muralista napolitano que desperta a tempestade

Ciro Cerullo é um dos artistas urbanos mais conhecidos de Itália. Com murais em várias partes do mundo, conversou com A Voz do Operário sobre o seu trabalho.

“O Maradona adorou o mural”, recorda Jorit. Estamos diante da fachada de um enorme prédio no bairro de San Giovanni Barra. Nápoles é Pino Daniele, Sophia Loren, Totó, San Gennaro e mas também o jogador argentino. São alguns dos rostos de Jorit. Vítimas de racismo nas regiões do norte de Itália, os napolitanos são apelidados de “terrone”, cor de terra. Até o bronzeado ter valor estético, ser moreno era coisa de trabalhador agrícola. Era a cor dos miseráveis. Por isso, ganhar o campeonato dos ricos com um clube do sul era quase impossível. Maradona fez a proeza de levar a cidade aos ombros. “Não sabem o que perderam”, escreveu alguém na parede do cemitério de Nápoles no dia a seguir à conquista do campeonato. É fácil de perceber porque é que um jogador como Maradona é o ídolo desta gente. Um santo defeituoso que se deixou cair no inferno e regressou à tona.

Tão excessiva como o Vesúvio, a maior cidade do sul de Itália volta a tremer na manhã em que nos encontramos com Jorit. É mera coincidência mas o sismo acontece também no dia em que se cumprem 80 anos da libertação de Nápoles do nazi-fascismo, a única cidade italiana que consegue derrotar as tropas alemãs sem a intervenção dos aliados.

O mural de Che Guevara em Nápoles é o maior do mundo.
O mural de Che Guevara em Nápoles é o maior do mundo.

Jorit é o nome artístico de Ciro Cerullo, um nome cada vez mais internacional na arte urbana. Nasceu em 1990 na periferia de Nápoles e estudou na Academia de Belas Artes. Inspirou-se nas pinturas de Caravaggio para desenhar rostos nas paredes. Tinha cerca de 13 anos e o objectivo era fazer murais cada vez maiores. “Ao princípio, não era trabalho. Era militância”, explica quando recorda a sua trajetória política por organizações comunistas napolitanas. “Comecei a fazer alguns desenhos em lojas. Ganhava um pouco de dinheiro e continuava a pintar por todo o lado”.

Percorreu a Europa disparando tinta sobre as paredes. Nos confrontos com a polícia, perdeu alguns dentes. Enquanto caminhamos pelo bairro, mostra o mural gigante de Che Guevara. “É o maior do mundo”, informa. Por aqui passou a filha do guerrilheiro argentino e a filha do ex-presidente cubano Raul Castro. Por baixo, alguém escreveu “gostamos do sol mas desatamos a tempestade”. 

Em Moscovo, Jorit pintou um desenho imponente de Iuri Gagarine, o primeiro homem no espaço, e de Julian Assange, o jornalista encarcerado em Londres. A imagem de marca deste artista napolitano são as cicatrizes nos rostos que pinta. Começou a fazê-lo inspirado em algumas culturas africanas. Até que um dia, cortou o próprio rosto e marcou-o para sempre. O artista criou a obra e a obra criou o artista. 

Num carro amolgado e cheio de marcas de tinta, mostra o mural com o rosto de Salvador Allende. Este bairro é uma galeria de arte a céu aberto. “Ao ver os edifícios, as pessoas ficam muito satisfeitas. Antes não havia nada”, descreve. Agora, sentem orgulho nesta zona de Nápoles marcada pela pobreza. Passamos pelo mural de Martin Luther King e conta que esteve este ano em Mariupol onde pintou o rosto de uma criança. Já antes fizera, em Itália, uma intervenção artística dedicada aos antifascistas que, em 2014, foram assassinados dentro da Casa dos Sindicatos em Odessa. “Queria fazer algo assim. Na Europa, não há nada do género. E eu lutei sempre contra o fascismo. Para mim era muito estranho. Ninguém falava disto em Itália…”

Também este ano, pintou um mural em Roma dedicado a Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada em março de 2018. Em Scampia, Jorit estampou o rosto de Pier Paolo Pasolini num dos bairros mais ostracizados de Nápoles, sempre associado à Camorra. “O Pasolini é um símbolo de luta e cultura, é portador de valores profundos, de sentido de justiça, de redenção, de comnunidade e de aspirações revolucionárias. No mundo atual, homologado pela triste religião do consumismo, as suas palavras são ainda mais importantes. Scampia é revolução, Scampia é arte, Scampia é luta”, comentou o artista napolitano.

Em 2018, foi preso pelas autoridades israelitas depois de pintar o rosto da jovem palestiniana Ahed Tamimi no muro construído por Israel para consolidar o aparheid. Acusado de vandalismo, foi posteriormente libertado e expulso do país. Como outros artistas, prefere que as paredes digam o que alguns querem calar. Neste caso, usa-as para denunciar injustiças e para valorizar figuras comprometidas com a luta contra a opressão.

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