Cultura

Paula Rego

A arte no tempo e no espaço, uma dialética para Paula Rego

A morte de Paula Rego trouxe um sentimento de perda generalizado. Esta é uma manifestação inequívoca da relação da sua arte com os indivíduos e destes consigo próprios.

A artista morreu no passado 8 de junho, aos 87 anos.

Com particular destaque para as populações escolarizadas, uma parte substancial das pessoas reconhece o trabalho da pintora e isso tem uma importância significativa na vida da arte e da cultura de uma determinada população, num determinado intervalo de tempo. Acresce o facto de Paula Rego ser uma mulher pintora num mundo onde o acesso às grandes galerias era reservado ao patriarcado das artes plásticas. Como todos os outros, é (cada vez menos) um mundo de homens. Não deixa de ser um acesso limitado àqueles a quem as portas dos nichos culturais e das elites se abrem com mais facilidade – Paula Rego não era, propriamente, uma filha da classe trabalhadora e nem todos nos podemos dedicar exclusivamente, desde a juventude, às artes.

A arte de Paula Rego não foi, ainda assim, alheia à dominação masculina, ainda que com uma certa imagética anacrónica, remetendo-nos para universos mais conservadores, com protagonistas descontextualizados. É como se a pintora pegasse em Caravaggio e dessacralizasse as suas personagens, trazendo-as para o mundano, na esteira grotesca de Egon Schiele, Francis Bacon, Lucian Freud ou Pablo Picasso. Não se pretende aqui caracterizar empiricamente uma escola, mas identificar uma linhagem de artistas que utiliza ambientes clássicos ou ausência de qualquer cenário para contrastar e evidenciar a bizarria do corpo. Ao híper-realismo de Caravaggio contrapõe-se uma figura excêntrica àquele território.

A arte da Paula Rego é uma expressão muito explicita do seu (nosso) tempo, em que as preocupações existenciais, a afirmação do ego no espaço social e a luta entre o corpo, o espírito e a autoestima assumem um papel central.

A arte da Paula Rego é uma expressão muito explicita do seu (nosso) tempo, em que as preocupações existenciais, a afirmação do ego no espaço social e a luta entre o corpo, o espírito e a autoestima assumem um papel central. Na verdade, chega a ser indiferente se se trata da mulher, enquanto sujeito de género oprimido, ou do homem, da criança, do idoso. A pintura da Paula Rego é sobre o reflexo do exterior no íntimo e de uma clausura, de um acantonamento íntimo que nos promete a visibilidade da autocomiseração. O grotesco, o feio, o rude são só um instrumento para a afirmação do eu vitimizado e autocomiserado, legitimando artisticamente um momento histórico de alheamento com a dialética do exterior. No fundo, valida a desistência do indivíduo em procurar, no exterior, um motivo de transformação desses territórios das classes dominantes, em vez da confrontação com a sua aparente individualidade e singularidade na qual despende o seu tempo de autorreflexão. A inadaptação, a inadequação e a excentricidade são a desculpa para essa falta de compromisso com uma construção coletiva.

É sobretudo isto que aproxima a arte de Paula Rego do indivíduo moderno e que a transformou numa artista com um inquestionável reconhecimento internacional. A dimensão da sua arte e as reações tantas vezes contraditórias que provoca naqueles que com ela são confrontados fazem dela uma das artistas mais relevantes na cultura ocidental do último século. Seria interessante perceber o que seria, hoje, Paula Rego se se tivesse sujeitado à política cultural portuguesa, ao seu meio gregário, centralista e circunscrito e às pequenas disputas caseiras da crítica de arte.

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