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José Saramago, do escritor ao filósofo

No ano em que se celebram os cem anos do nascimento de José Saramago, entrevistamos Sérgio Letria, diretor da Fundação a ele dedicada, que nos falou do escritor, do homem e do “filósofo”: “Ao enorme reconhecimento do José Saramago enquanto escritor, vai-se aprofundando o José Saramago enquanto filósofo, grande pensador do nosso tempo”.

Quando foi criada a Fundação José Saramago?

A Fundação foi criada a 29 de junho de 2007, em Lanzarote. A Pilar [del Río] e um grupo de amigos de José Saramago (JS) lançaram-lhe essa ideia. Inicialmente ficou calado, depois acabou por entender a ideia e anuir [Pilar conta-o em “A intuição da Ilha”, publicado recentemente]. A ideia inicial seria trabalhar para manter viva a obra do escritor, a sua intervenção política, social e cívica. Conhecendo a obra de JS é fácil entender o que aconteceu a seguir: escreveu uma declaração de princípios, o documento orientador do trabalho da Fundação, onde enumera as áreas que a Fundação deve trabalhar: a defesa da Cultura, Direitos Humanos e Ambiente. Tem até uma frase curiosa: “Como se vê, não vos peço muito, peço-vos tudo. Inicialmente a Fundação esteve no edifício na Rua do Almirante Gago Coutinho e em 2012 abrimos a sede na Casa dos Bicos, fruto de um processo que tinha começado em abril de 2008, por proposta da Câmara Municipal de Lisboa e do Ministério da Cultura que apadrinharam a proposta de cederem a Casa dos Bicos à Fundação, por períodos de dez anos. O primeiro foi até 2018, o segundo vai até 2028 e, à partida, estamos em crer que será renovada.

É possível conhecer José Saramago lendo a sua obra?

Isso é um dos fascínios da literatura, embora muitos autores defendam que a partir do momento em que o livro é escrito, o autor acaba de alguma forma por morrer. JS defendia que cada livro leva dentro o autor e também o leitor, e isso é ainda mais visível porque, em toda a sua obra literária há quase como uma voz do narrador permanentemente a interpelar o leitor, puxando-o para dentro do livro, da narrativa, convidando-o a tomar a iniciativa de fazer qualquer coisa. Podemos cruzar isto com várias frases de José Saramago em entrevistas e conferências. Quando afirma que “no Mundo, há duas superpotências, os Estados Unidos e tu próprio”, isso é um convite para que – di-lo nos discursos de Estocolmo -, “tomemos nós então cidadãos comuns a palavra e a iniciativa”. Em toda a sua obra é isso que acontece. 

É uma caraterística comum em toda a sua obra?

Em 1999 José Saramago dá uma conferência em Turim, já depois do Nobel, a que deu o título “Da Estátua à Pedra”. Aí, anuncia que a sua obra tem duas fases: a da Estátua e a da Pedra. A mudança dá-se quando muda a sua residência para Lanzarote, e resulta de uma influência muito direta daquela paisagem crua, áspera, cinzenta, escura e dura na sua escrita. O primeiro livro que escreve em Lanzarote é precisamente o “Ensaio sobre a Cegueira”. O que ele diz é que, até aí, tentava colocar na sua obra todo o detalhe, toda a beleza, todo o pormenor que existe nas estátuas. O ter ido para Lanzarote, nesse contacto com o entorno, fez com que a sua escrita passasse para a fase da Pedra, muito mais direta, crua, dirigida a uma coisa mais orgânica. 

Como se caracteriza essa fase da Pedra?

Vários livros de JS nasceram de inquietações e de questões que ele próprio se colocava. O “Ensaio sobre a cegueira”, esta fase da pedra, é a fase dos grandes romances universais, sem localizações geográficas e temporais precisas, onde JS tenta pôr em prática e questionar algumas teses e defender outras: o “Ensaio sobre a cegueira”, o “Ensaio sobre a lucidez”, “As intermitências da morte”. 

Como dialoga o autor através da sua obra?

Saramago, enquanto pessoa política, militante comunista até ao fim dos seus dias, ao longo da sua vida teve uma intervenção política vastíssima e muito atenta e isso pode ser comprovado com o que lemos nas suas intervenções nos anos 90, a propósito da construção europeia, por exemplo. Em plena crise no início deste século, na Fundação, pegamos nesses textos em que José Saramago falava do que poderia vir a ser o papel da Alemanha na construção europeia, de se transformar em algo que secaria tudo à sua volta e que comandaria os destinos da Europa. Não há aqui qualquer dote adivinhatório; é a capacidade de analisar, de pôr as coisas em perspetiva, a partir da realidade. A sua intervenção foi sempre marcada pela importância dada às questões locais e mundiais. Desde antes do 25 de Abril de 1974, há textos sobre a política Cultural em Portugal, de uma atualidade extraordinária. E, depois, às grandes questões do Mundo, com os direitos humanos à cabeça e não é por acaso que a Fundação tem como documento orientador, para além da declaração de princípios, a Declaração Universal de Direitos Humanos. Tudo é um manifesto a favor dos direitos humanos, da igualdade, de uma maior justiça social. O diálogo é totalmente possível entre o que foi a vida de JS, a sua intervenção enquanto homem e cidadão e a sua intervenção como escritor, sem que as suas obras tenham sido panfletárias.

Obras como Ensaio sobre a cegueira parecem acomodar realidades recentes. São nestas alturas mais procuradas pelos leitores?

Temos total consciência disso, até porque vamos vendo, via tecnologias, mas também pelos contactos que temos com entidades e pessoas de todo o mundo e que nos interpelam, enviam propostas, convites que nos desafiam para se organizarem coisas a partir da obra de JS. Há esses nexos de relação entre coisas que estão a acontecer ou quando vemos, em variadíssimos artigos de jornais, referências à obra de JS para ilustrar ou enquadrar situações. Nestes anos da pandemia, o “O Ensaio Sobre a Cegueira” voltou a ter uma atualidade enorme muito centrada nesta questão da pandemia, fechando-nos em casa ainda antes de sermos obrigados a fazê-lo, o que também já é um sintoma. São variadíssimos os casos, grupos de teatro que nos contactam por quererem adaptar a obra de JS para salas ou escolas. Os alunos que nos visitam, cerca de 10 mil por ano – números pré-pandemia, que já estamos a recuperar – e com os quais temos uma relação muito próxima, ouvem o que lhes temos para dizer, mas também pedimos que nos digam o que pensam a partir da obra de JS, ou como relacionam as obras com as suas vidas. 

O que é mais celebrado hoje em dia, a obra ou o homem que dialoga através da sua obra? 

Com o passar do tempo, ao enorme reconhecimento de JS enquanto escritorvai-se aprofundando o JS filósofo, grande pensador do nosso tempo. É um caminho que já está a ser trilhado há muito tempo e que vai aprofundar-se cada vez mais, tendo como ponto de partida a obra literária e todas essas parábolas, todas essas criações que JS constrói e que nós depois conseguimos relacionar com o dia a dia, com todo este mundo terrível que estamos a viver, mas também com este lado da intervenção que foi muito importante. JS foi, dos Prémios Nobel, se não o mais, pelo menos um dos mais interventivos ao longo dos anos.

O Prémio Nobel deu-lhe essa possibilidade?

Embora tenha chegado a dizer que o Nobel também podia ser quase visto como uma espécie de concurso de beleza, em que as pessoas ostentavam uma espécie de faixa durante um ano e depois era esquecido, teve a capacidade para, juntamente com a Pilar, a muito custo, às vezes, manter-se muito presente. Tinha a perspetiva de que a sua intervenção não existia apenas a partir dos livros, também com tudo que tinha para dizer no mundo. E há uma intervenção muito direta dos seus princípios ideológicos, de vida e também da sua origem, de alguém que nasce numa família de camponeses pobres sem terra, e se constrói lendo muito, sem condições para frequentar uma universidade. 

Como foi sendo construída a obra? 

José Saramago nasce em 1922. Com 25 anos escreve o primeiro livro publicado com o título “A Terra do pecado”, O livro será reeditado em breve e sairá desta vez com o título que ele tinha escolhido, “A Viúva”, e que o editor não quis. Passados seis anos, JS escreve um outro livro que se chama “Claraboia”, que foi apresentado a uma editora que não o quis publicar e nunca lhe deu resposta. Nos anos 80, JS recebeu uma carta na qual um editor lhe dizia que tinha encontrado o original no arquivo e que o queriam muito publicar. JS tinha ficado profundamente magoado, não por não terem publicado, isso é uma prerrogativa do editor, mas por não lhe terem dado qualquer resposta. Na altura, não autorizou que o publicassem. Depois deu indicações à Pilar que esse livro poderia sair após a sua morte. 

Foi a segunda obra de Saramago.

Foi escrito em 1953 e publicado em 2011. Coloca-nos a espreitar por essa claraboia e a ver o que acontece em cada um desses apartamentos de um prédio de Lisboa, nos anos 50, durante a ditadura. Vamos percebendo essa ditadura a partir da forma como essas pessoas vivem. Mas, nesse prédio, no rés do chão, há um sapateiro que tem um quarto para arrendar e há um jovem que aparece para arrendar esse quarto. Há diálogos extraordinários entre essas duas personagens. Encontramos o jovem José Saramago e já muito daquilo que era o pensamento que depois se comprova ao longo da sua obra. É um género de embrião do grande escritor José Saramago, através de uma personagem do livro. 

Regressa ao romance com o “O Manual de Pintura e Caligrafia”. 

Durante muitos anos, JS não escreve, por achar que não tinha nada para dizer ao Mundo. Fez o seu percurso profissional, como editor, teve várias profissões, depois de ter sido serralheiro mecânico, mecânico de automóveis, mas nestes dois primeiros livros já vamos percebendo muito do que viria a ser o JS. Ainda de forma incipiente, mas já o conseguimos perceber. E depois podemos dizer que o romancista JS escreve em 1976 um livro chamado “Manual de Pintura e Caligrafia”, uma espécie de ensaio, onde liga a pintura à escrita. Mas o grande romance é “Os Levantados do Chão” que nasce de uma ida para o Alentejo. José Saramago é despedido do DN. Fica sem trabalho. Depois, o Círculo dos Leitores, convida-o a fazer uma viagem a Portugal, para escrever um livro, descrevendo o que fosse vendo. Com o dinheiro desse trabalho, consegue ir para o Alentejo durante algum tempo e lá contacta com a história de vários camponeses alentejanos. A partir daí, nasce essa epopeia chamada “Levantados do Chão”. JS fixa um período terrível da história portuguesa (antes do 25 de Abril), um período de grandes dificuldades, de grande dureza. É um romance importante em termos de conteúdo, e também por literariamente ter algumas ferramentas que vai utilizando: por exemplo, contar episódios de tortura no posto da GNR com os olhos de formigas. Diz, em entrevistas, que gostava de ser aquele que levanta as pedras para ver o que está por baixo. Aí nasce o estilo saramaguiano, das frases longas, da não utilização dos pontos finais. 

Como é que se dá esse processo?

Saramago escreve 21 páginas do “Levantados do Chão”, para. Volta atrás e começa a escrever novamente o livro já dessa forma, com esse estilo, essa forma de pontuar o texto. Disse que queria que a sua escrita tivesse dentro de si a oralidade, a profusão de vozes que também ouviu quando esteve no Alentejo. Por isso disse também que quem tivesse dificuldade em ler os seus livros os lesse em voz alta. 

Há hoje em dia quem siga esse estilo saramaguiano? 

Hoje em dia, já em conversas com alguns escritores que às vezes nos citam, alguns já confidenciaram que quando começaram a fazer as suas primeiras tentativas de escrita, tentaram escrever como Saramago, até com uma forma de pontuação diferente. Mas a literatura é de tal forma um campo de liberdade que podem existir sempre alguns seguidores de Saramago, ou porque pegam num determinado tema ou porque escrevem de uma determinada maneira, mas não acho que isso seja o mais importante. O mais importante é garantir que a literatura continua a ser mais um desses espaços de liberdade que a arte deve ter e que hoje em dia é condicionada por tantas coisas. E, depois, cada um fará o seu caminho.

Entretanto foi criado o Prémio José Saramago.

Logo após receber o Nobel, foi criado o Prémio José Saramago que era atribuído aos escritores até aos 35 anos. Entretanto passou a ser até aos quarenta. Foi uma forma de ter um prémio que apoiasse os jovens escritores que não tivessem de passar por aquilo que o JS passou, que só numa fase avançada da sua vida conseguiu sobreviver da escrita. E premiou grandes escritores ao longo das várias edições, mas daí dizermos que são seguidores, não! Cada um tem o seu percurso e é muito interessante que assim seja, todos eles, não digo debaixo do chapéu no sentido de condicionar, mas com esse selo que se coloca no livro – Prémio Literário José Saramago – de alguma forma ajuda a abrir algumas portas, e ainda bem porque de facto todos eles têm muito talento.

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