O seu legado é inestimável: na produção intelectual, na poesia e na ensaística, na docência que deixa uma profunda marca na forma de pensar de gerações (um “maître à penser”). No excepcional quadro político que foi, intelectual militante de todas as lutas do Portugal de Abril. No marxista sem falhas, cuja leitura de Marx e Engels emprestava nova actualidade à reflexão dos clássicos. No poeta com sensibilidade de agitador da “esperança que não fica à espera”.
No quadro político que, talvez como nenhum outro, conceptualizou as questões da cultura e da arte como áreas centrais do combate democrático. Da cultura e da arte entregues e enraizadas na classe operária e no povo, não couto reservado de elites.
Foi esse o tema da sua intervenção quando, em 2015, a Voz do Operário o homenageou. Intitulou a sua intervenção “A Voz de Um Operário”, e desenvolveu nela um dos seus temas favoritos, partindo da afirmação de Marx de que “A formação dos 5 sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até hoje” ou seja, do papel da arte na configuração e construção da humanidade dos humanos. Texto belíssimo, como tudo o que escrevia, que conclui com a análise de um poema, da tal Voz de Um Operário. É especialmente significativo que essa voz escolhida fosse uma voz poética. E que essa voz fosse a de um dos mais destacados quadros operários da resistência antifascista e do Portugal de Abril, o comunista António Dias Lourenço.
Sabe-se que os comunistas, na tradição leninista, definem os funcionários políticos como “revolucionários profissionais”. Manuel Gusmão terá dito certa vez que não era senão “revolucionário amador”. Mais uma vez, falava o poeta. Movia-o o amor à causa da revolução, assente num profundo entendimento de que essa causa mobiliza em cada verdadeiro revolucionário tudo o que potencialmente terá de melhor em inteligência, coragem no pensar e no agir, conhecimento incessantemente aprofundado, organização, fraternidade humana.
Discurso de Manuel Gusmão durante a homenagem d’A Voz do Operário em março de 2015
“Na sua última edição, A Voz do Operário traz um artigo meu, intitulado «como as artes nos fazem humanos». É a esse artigo e a alguns problemas que ele suscita que quero voltar.
A experiência da escrita-e-da-leitura da poesia mostram, no seu fazer-se, que nós somos também isso mesmo: «corpos históricos singulares, percorridos por uma “escrita emaranhada”; uma voz escrita, inscrita e excrita – “tatuagem e palimpsesto”; em alguma medida, somos feitos e desfeitos pelo «poieín» [pelo fazer das artes]; pela poesia […]; pelo romance em que procuramos os nossos possíveis; pelas cenas de teatro onde corpos e vozes ardem à nossa vista; pelos filmes que nos correm no sangue; pela música que nos sopra os ventos nas árvores do cérebro; pelas pinturas que nos constroem o olhar capaz de folhear o visível; pelas fotografias em que ficámos para sempre (junto) de uma rocha batida pelas ondas; pelas esculturas em que tacteamos o desabamento e o voo do mundo; por essa dança que nos desenha no ar, enquanto voamos vagarosamente à beira do vulcão; pelas palavras que um dia nos disseram ou não disseram, por tudo aquilo que escolhemos ou nos escolheu; ou por aquela “lettera amorosa” que lemos e relemos e contudo não chegou a ser escrita, nem enviada. (…)»
O que pretendo neste fragmento de um ensaio de há alguns anos é basicamente dizer de uma certa maneira algo de que estou profundamente convencido e que me parece importante para acertar no que considero ser a cultura artística ou a natureza e o papel específico das artes no sistema aberto da cultura nas sociedades humanas. Aproximando-me de outra forma do que pretendo, direi, no fundamental, que gostaria de argumentar uma ideia de Marx, que encontro nos Manuscritos económico–filosóficos de 1844:
“A formação dos 5 sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até hoje”
Interessa-me além do mais o modo como posso operacionalizar nas lutas presentes algumas indicações de Marx nesse sentido.
Gostaria de deixar claro desde já que se as artes são um polo fundamental em torno do qual se estabelecem as várias culturas artísticas, isso não significa que arte e cultura artística sejam rigorosamente sinónimos. Para que haja arte tem que haver um núcleo de invenção ou descoberta, enquanto a cultura artística é sobretudo absorção de efeitos produzidos pela obra, pedagogia do gosto, generalização do comentário, da divulgação e da massificação das maneiras de lidar com as obras. Assim, a arte, mesmo se integra todo um saber acumulado e uma regulação tradicional, mesmo se implica uma componente de memória, é tendencialmente governada pela inovação ou pela invenção. A ideia é a de que as artes modelam ou modulam o nosso aparelho perceptivo e os nossos sistemas de valores e de práticas e isso acontece através da objectivação dessas nossas faculdades subjectivas, que se desenvolvem ou pelo contrário se embotam consoante a frequência e intensidade da sua exposição ou do seu convívio com esses objectos que são obras de arte.
Aqui, o legado do pensamento de Marx virá a integrar e mesmo a desenvolver aqueles movimentos da investigação contemporânea que ao longo do século XX destacaram a importância das conexões e retroacções entre a produção e a recepção artísticas.
Basta, neste caso, recordar uma famosa passagem da “introdução à crítica da economia política” de 1857, em que Marx escreve:
“o objecto de arte – tal como qualquer outro produto – cria um público capaz de compreender a arte e de apreciar a beleza. Portanto a produção não cria somente um objecto para o sujeito mas também um sujeito para o objecto.”
São formulações como esta que nos têm levado a defender que a democratização da cultura não é tanto a democratização do acesso à fruição cultural mas sim um processo de democratização estrategicamente orientado por um objectivo principal, – que é a democratização do acesso à criação cultural.
A democratização do acesso à fruição tem um papel muito importante, mas apenas um papel e um valor instrumentais.
Na mesma passagem dos manuscritos económico-filosóficos, Marx escreve – a música desperta o sentido musical do homem, tal como para o ouvido não musical a mais bela música não tem nenhum sentido, não é nenhum objecto, porque o meu objecto só pode ser a confirmação de uma das minhas forças essenciais, portanto só pode ser para mim assim como a minha força essencial é para si como capacidade subjectiva, porque o sentido de um objecto para mim (só tem sentido para um sentido correspondente a ele) vai precisamente tão longe quanto vai o meu sentido, pelo que os sentidos do homem social são outros sentidos que não os do não-social; somente pela riqueza objectivamente desdobrada da essência humana é em parte produzida, em parte desenvolvida, a riqueza da sensibilidade humana subjectiva – um ouvido musical, um olho para a beleza da forma, somente em suma sentidos capazes de fruição humana, que se confirmam como forças essenciais humanas. Pois não são só os 5 sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), numa palavra, o sentido humano, a humanidade dos sentidos, apenas advém pela existência do seu objecto, pela Natureza humanizada.
A minha experiência como professor tal como a dos meus colegas com quem regularmente discutia tem-me confirmado na recusa da existência de impossibilidades reais numa dada relação entre um humano e uma obra de arte.
As dificuldades, por vezes inultrapassáveis são imputáveis a razões económicas, sociais, políticas e culturais. Essas razões são consequências de um sistema de injustiça generalizada que é o da exploração do homem pelo homem.
A Voz do Operário, que faz 132 anos, é uma das instituições criada pelo movimento operário em Portugal, no último quartel do séc. XIX e tendo já dado provas de uma larga continuidade histórica. Entre as suas esferas de acção destacam-se as escolas e o jornal.
Agradeço por isso que o presidente da sua direção, Manuel Figueiredo, tenha usado para justificar esta homenagem as seguintes palavras:
“A Voz do Operário assinala o percurso e a obra de um homem, com uma vida dedicada à cultura e ao mesmo tempo sempre associada à causa dos trabalhadores e à sua luta por um mundo novo.”
Para completar o meu agradecimento permitam-me que me valha de um último recurso. Que exponha como exemplo breve um tipo de actividade que está sempre na base da minha profissão; ler o poema de um outro como forma de acolhimento e de diálogo.
Balada do fumo negro
Eu te saúdo, ó fumo negro das fábricas
Eu te saúdo!
Aí onde maculas o azul
Onde rolas ao sabor da ventania,
Há homens que o carvão tingiu de negro
Homens verdes, brancos, amarelos
Homens cor do cimento e da ferrugem,
Homens sem raça!
Homens sem cor!
Eu te saúdo, ó fumo negro das fábricas!
Tu que és negro resíduo
Desse estupendo cadinho
Onde se fundem tragédias.
Eu te saúdo, ó fumo negro das fábricas!
Nessa raça de homens que não têm raça,
Nessa raça de homens que não têm cor.
Eu te saúdo
Pelos rostos banhados de suor,
Verdes, brancos, amarelos,
Cor do cimento e da ferrugem
Que o carvão risca de negro.
Cinco notas apenas, esboçando uma leitura do poema.
Primeira nota:
Os 21 versos que se seguem, ritmados, uns aos outros, dispensam os intervalos de branco que convencionalmente marcam a fronteira entre as estrofes e confiando com razão que a marcação pelo branco seria redundante.
Segunda nota:
O poema joga com gestos e procedimentos de três tradições: uma é a que encontramos presente em qualquer civilização poética, e a que chamarei paralelismo; A outra tradição é a da balada e poderá vir do romantismo; A terceira tradição é, por estranho que possa parecer, a tradição modernista, que vem do primeiro quartel do séc. XX tem em Portugal o seu nome emblema, que é o de Fernando Pessoa / Álvaro de Campos.
A tradição modernista é a mais inesperada num jovem poeta, e é aqui praticada com uma grande desenvoltura porque o autor terá compreendido que o modernismo criava regras para não as cumprir e para com essas regras substituir as da poesia mais convencional.
É assim que o poema está cheio de retomadas e variações de formas, expressões ou palavras idênticas por vezes encadeadas em dois versos que se repetem.
Simplesmente, algumas dessas repetições são apenas parciais – “homens sem raça”/ “homens sem cor”
«Nesta raça de homens que não têm raça,
Nesta raça de homens que não têm cor.»
A terceira nota:
Através destes jogos de palavras o autor vai tecendo entretanto o que parece ser um enigma poético e construindo com essas dissonâncias, entre aquilo que é repetido, focos de contradição ou de tensão entre as palavras.
Do ponto de vista das ações há três verbos fundamentais e todos eles traduzem graus diferentes de transformação.
Tingir fundir riscar
Há homens que o carvão tingiu de negro//
Tu que és o negro resíduo
Desse estupendo cadinho
Onde se fundem tragédias.//
Que o carvão risca de negro!//
Como se liga este processo de transformação, que faz do coração do poema os versos de 11 a 15, com a tentativa de cromatismo que o poema, por um lado, joga e, por outro lado, nega?
Toda a gente percebe que estes homens verdes, amarelos e brancos são os operários. Mas essa sua condição é uma condição que os torna em parte como representantes de uma cor ou de uma raça e desse paralelismo entre raça e cor da pele.
Quarta nota:
Não será que existe uma relação figural entre fábricas e cadinho? É uma hipótese a trabalhar, porque é no cadinho que se processa a maior transformação.
Quinta nota:
Se os operários conhecem na fábrica um processo de transformação pelo qual o negro do carvão tinge e risca as outras cores e se do cadinho se eleva esse negro resíduo que fica da fusão entre minérios ou metais, então os operários são também transformados e integram um colectivo que nega raças e transforma as cores.
Este poema publicado em 1939 no Mensageiro do Ribatejo foi escrito por um jovem serralheiro mecânico de 24 anos chamado António Dias Lourenço.