O deserto de Atacama no norte do Chile – a localização de Nostalgia da Luz (2010), de Patrício Guzmán – é um dos lugares mais secos da terra, onde astrónomos instalaram telescópios para aproveitar o ar extraordinariamente limpo, a inexistência de humidade, a virtual inexistência de nuvens, e a ausência de poluição luminosa e interferências radiais das cidades próximas. Nas sequências iniciais do documentário, a voz aprazível de Guzmán conta-nos como se sentiu atraído pela região como consequência do seu fascínio em criança pela astronomia e o seu entusiasmo por Júlio Verne – o tema de um filme que realizou para a televisão francesa há alguns anos (Mon Jules Verne, 2005) -, fascínio que agora registou liricamente sobre a magnificência dos céus atacamenhos, donde o olho nu pode ver um extraordinário número de estrelas e constelações. No primeiro filme que Guzmán gravou em HD, a translúcida luz do título e as áridas extensões da paisagem são incrivelmente capturadas pela fotografia límpida de Katell Djian. A banda sonora também se vê permeada pela paisagem, cheia de silêncios e pulsações reticentes da música composta pelos chilenos Miranda e Tobar.

Mas o documentário de Patricio Guzmán não é só uma arqueologia das estrelas. Para além do desconhecido espacial, o realizador chileno conduz-nos ao desconhecido do que está debaixo daquele chão feito deserto. Debaixo da terra, está a história do Chile e da barbárie desatada pelo fascismo capitaneado por Augusto Pinochet que tomou o poder em 1973 através de um sangrento golpe de Estado contra Salvador Allende. Mais vivos do que qualquer torturador ou fascista, continuam os torturados e assassinados desaparecidos não se sabe onde na imensidão do deserto. A Nostalgia da Luz é, por isso, um documentário que empreende uma viagem pelo espaço de amnésia que é a história do Chile. É um país perseguido pelo espetro da justiça mas, aqui, contornando a proximidade dos eventos históricos e das suas figuras, o tom é uma espécie de melancolia – que, ao contrário da função do luto, nunca parece aproximar-se de um fim -, uma melancolia poética e serena fundada na reflexão intelectual que renuncia à ficção da superioridade humana sem repudiar o sonho utópico da justiça social que jaz debaixo do sol.

O contraste das imagens e entrevistas ao trabalho dos astrónomos, a três mil metros de altura, com a salinidade do solo que preserva os restos humanos dos opositores ao regime fascista revela os que buscam vida extraterrestre e um grupo de mulheres que procuram os seus familiares queridos debaixo do deserto.

Em agosto de 2013, o documentário foi editado consideravelmente na sua transmissão televisiva pelo canal Televisão Nacional de Chile no que foi considerado pela imprensa como um ato de censura contra a obra de Guzmán. Em resposta, o realizador escreveu uma carta ao canal. Em outubro do mesmo ano, a diretora de uma escola interrompeu a exibição do documentário por considerar que os temas da ditadura são “coisas que não se podem tratar nas escolas”.

Patricio Guzmán nasceu em 1941, foi apoiante de Salvador Allende e foi detido durante o golpe de Estado, em 1973, enquanto filmava a trilogia documental mundialmente conhecida A Batalha do Chile que retrata os factos que desencadearam os trágicos acontecimentos. Esteve preso no Estádio Nacional e com a ajuda da sua mulher e amigos conseguiu enviar os rolos e exilar-se na Europa onde montou o documentário com o apoio do Instituto Cubano de Cinematografia (ICAIC).

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