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Entrevista com Paulo Miklos, ator e vocalista da banda Titãs

Celebrando quarenta anos de história, a banda brasileira Titãs se apresenta em Lisboa no próximo dia 3 de novembro, na Altice Arena. Antes de subir ao palco com os seus companheiros para comemorar as quatro décadas de rock e resistência, o músico Paulo Miklos conversou com A Voz do Operário, dividindo conosco um pouco da sua trajetória artística iniciada no fim da ditadura militar no Brasil. Ele também relatou a sua ligação com Portugal e contou alguns momentos importantes vividos como ator. Miklos afirmou ainda que é preciso estar sempre atento ao fascismo, “pois a qualquer momento ele pode ressurgir com toda a violência que é característica dele”.

Não posso deixar de iniciar essa entrevista sem lhe perguntar como foi o seu recente encontro com o presidente Lula e o músico Roger Waters. O que vocês conversaram?

Foi um encontro muito interessante. Nós falamos um pouco de tudo, mas, principalmente, que o Roger é um cara muito preocupado com os direitos humanos. Inclusive, as músicas dele são muito carregadas de sentido. Ele sempre foi muito antifascista, sempre muito preocupado com isso. Nós passamos agora no Brasil um período muito difícil de ataques à democracia. É interessante como parte do público não entende que o trabalho dele sempre envolveu essa história. Durante o encontro, ele contou que o pai dele morreu na guerra, na luta contra o nazismo. Isso foi realmente uma coisa decisiva e importante para ele. Desde então, Roger Waters fala sobre esse tema nas músicas, nas entrevistas, em tudo. Eu estava conversando com o presidente Lula a respeito disso. E o Lula, lógico, é um bom papo, né? Ele contou casos incríveis e maravilhosos sobre a política internacional, a respeito dos encontros e conversas que ele teve… Foi uma tarde muito interessante. Nós falamos inclusive sobre a vida “normal” e a idade. O Lula ficou dizendo a ele (Roger Waters) “como você está bem!”, “eu quero chegar aos 80 anos ‘que nem você’!” (risos). Ele sabia da biografia do Roger Waters, estava preparado para encontrá-lo. Foi bem divertido.
E vocês falaram algo sobre a situação que está acontecendo na Palestina?

Não, eles não tocaram nesse tema especificamente. Foi uma conversa mais genérica e meio pessoal. A gente não tratou de nenhum tema urgente.

Você também tem uma bonita carreira solo. Depois desse período terrível de tentativa de criminalização da classe artística no Brasil, qual balanço você tira desse momento e como acredita que os trabalhadores da cultura podem se fortalecer?

A sensação que a gente está de volta foi quando montamos a banda. Nós aparecemos no final da ditadura militar. Quando surgiram os Titãs, a gente veio com o pé na porta, de volta com a democracia, às liberdades e o fim da censura. A sensação que a gente tem agora é justamente de um período de celebração porque a gente está de volta segurando a democracia depois dos ataques terríveis, das tentativas de golpe e tudo mais. A gente vem reafirmando e reassegurando a democracia no país. Eu acho que essa celebração é um pouco desse sabor também, pois remonta esse ressurgimento da banda. E as canções também são atualíssimas. Elas envelheceram de um jeito muito interessante porque continuam conversando com a realidade que a gente vive, para o bem e para o mal. Todas as críticas que a gente fez continuam valendo. É uma alegria por um lado, mas é uma preocupação muito forte por outro.

A banda Titãs foi formada em 1982, na cidade de São Paulo. Essa será a primeira vez em 30 anos que os sete integrantes originais se reúnem. De lá para cá, muitas coisas aconteceram, incluindo a perda do guitarrista Marcelo Fromer, em 2021. De quem partiu a ideia para essa reunião de celebração dos 40 anos de história?

Foi acontecendo naturalmente em conversas entre a gente, pois esse momento dos quarenta anos estava se aproximando. Isso foi durante a pandemia, mas nós ficamos impossibilitados de fazer. Porém, foi bom porque deu tempo da gente pensar no formato que nós gostaríamos. E ficou muito claro para todos que só tinha uma maneira de realizar isso: remontar a banda como ela era e sempre foi. Isso demanda um esforço gigantesco. O Nando Reis, por exemplo, não tocou mais o baixo. Ele teve que voltar a ser baixista (risos). Eu não tocava saxofone há pelo menos quinze anos! Fui atrás de fazer uma manutenção no “sax” e em mim mesmo para poder tocar (risos). E assim foi com cada um. É um prazer imenso estar com esse repertório, cantando juntos. A gente se diverte tanto no palco e isso fica muito patente. É algo perceptível para o público como nós ficamos felizes em estarmos juntos.

Recentemente eu estive com o Arnaldo Antunes no Porto. Ele disse que Portugal foi o primeiro país em que vocês tocaram fora do Brasil, ainda nos anos 80, e que os primeiros espetáculos foram com os Xutos & Pontapés. Conte-nos um pouco sobre a sua relação com o país e se você acompanha artistas portugueses da atualidade.

A minha ligação com Portugal é muito estreita. Primeiro por amar o país. Eu já fui diversas vezes passear porque os meus avós, por parte de mãe, são portugueses. Fui até Viana do Castelo conhecer a terra natal dos meus avós. E lá é lindo demais. Fiquei me perguntando “por que eles saíram daqui?”. É uma alegria muito grande poder ir até Portugal, mas eu tenho muito para conhecer. Não conheço ainda o Algarve, Cascais… Tenho amigos portugueses muito queridos. O Antonio Capelo, por exemplo, é um grande ator. Nós trabalhamos juntos aqui no Brasil e depois firmamos uma amizade muito bacana. O Antonio sempre nos recebe quando vamos a Portugal. Ele tem o Teatro do Bolhão e faz um trabalho muito lindo. Tenho uma admiração muito grande por ele. Quanto aos Xutos & Pontapés, eu vou reservar uma surpresa durante o show. É uma banda irmã, né? Nós temos uma história paralela muito interessante, somos muito fãs. Eles também perderam um componente muito importante do grupo, e sempre falam sobre isso em homenagens e tal… 

Outro nome importante da música lusitana é Zeca Afonso, que ficou muito conhecido pela canção ‘Grândola Vila Morena’, hino da Revolução dos Cravos, que completará 50 anos em 2024. Quais são suas recordações a respeito deste triste período da história portuguesa?

É mais ou menos aquilo que a gente viveu no Brasil, né? Imagina, eu cresci… A minha adolescência foi durante a ditadura. É muito triste você ter esse tempo de vida roubado. A minha sensação é essa. Eu não posso medir o que seria a minha juventude, a minha adolescência se eu tivesse liberdade. Os artistas que lutaram, que eu conheço e são meus ídolos, como Chico Buarque, Caetano, Gilberto Gil e outros tantos que batalharam durante esse período para poderem se expressar minimamente e levar e fazer, de maneira revolucionária, a cabeça da gente. Eu acho que a gente deve isso a eles. Essa minha geração deve à geração deles essa consciência política. Então, esse momento (em Portugal) é muito semelhante e foi um longo período. A sensação que dá é de um tempo roubado. É difícil. É um tempo que não volta. Para a gente resta construir daqui para frente e assegurar a democracia, manter bem firmes os laços. Mostrar sempre para as novas gerações a importância que é estar atento ao fascismo, pois a qualquer momento ele pode ressurgir com toda a violência que é característica dele.

Aqui a gente também sofre com a violência policial, principalmente as pessoas que vivem nos bairros periféricos da grande Lisboa. Vocês cantaram sobre isso lá nos anos 80, no fim da ditadura militar no Brasil. Você acredita ser possível uma polícia que realmente proteja a população em um sistema capitalista?

É bastante difícil. Tanto que a gente não vê progresso, né? É incrível isso! No entanto, a polícia devia ser civil. Imagina que no Brasil a polícia é militar. Isso já diz tudo! Não vai dar certo. A polícia tem que servir a população e não oprimi-la. O sujeito quando está com uma arma na cintura… Quem colocou essa arma, quem vestiu aquele capacete, o escudo… Aquilo tudo é do povo e não deve ser usado para oprimir. Os governos são, seguramente, culpados por essa situação que não se altera nunca. Deve haver uma educação geral, uma mudança de comportamento, de consciência, para que haja uma transformação. É muito complicado.

Além de músico você é um grande ator. Já participou de clássicos do cinema brasileiro como ‘Estômago’, ‘O Invasor’, ‘O Homem Cordial’, etc. Como surgiu o convite para interpretar o sambista Adoniran Barbosa no longa ‘Saudosa Maloca’, dirigido por Pedro Serrano?

Em 2015 nós fizemos um curta metragem muito bonitinho que é uma prévia do que é o filme. Foi quase como um ensaio do que foi o longa. Foi uma alegria muito grande perceber as possibilidades de viver uma personagem tão rica como a de Adoniram Barbosa, que é uma personagem que está na cabeça de todo mundo. Todos conhecem ou têm uma memória afetiva com esse artista. O Adoniran é uma personagem que ele próprio criou. Na verdade, o nome dele é João Rubinato. Ele criou a personagem Adoniran Barbosa que fala daquele jeito divertido, como fala o povo. Ele conta as histórias e as tragédias do povo de uma maneira muito divertida, com um humor muito característico. É com esse humor que ele traz uma consciência política, inclusive. O Adoniran fala sobre as mazelas, as dificuldades e as tragédias do povo na voz do povo. É uma maneira divertida de você rir das coisas, mas elas têm uma profundidade muito grande dada a situação.

O Pedro Serrano foi muito sagaz porque ele trouxe esses personagens das músicas para o enredo do filme. As personagens das canções tomam vida. Tem o Joca e o Mato Grosso, que estão na música ‘Saudosa maloca’, que são os caras, os maloqueiros que habitavam a maloca junto com ele. Tem a Iracema, a moça atropelada, que é uma tragédia. Tem o Arnesto, que convida a turma para o samba e quando todo mundo chega ele não está. Essas personagens todas estão no filme, que é muito querido, muito bem cuidado, pois é um longa de época também. Eu tô mais velho, no que seria os anos 80, contando a história em flashback. Aí quando aparece a história, eu estou mais novo, nos anos 50, vivendo os relatos que o Adoniran conta nas músicas. Muito interessante e bem feito. Não é uma biografia do Adoniran Barbosa, é uma ficção musical com muito samba.

Quero muito ver, pois como Corinthiana e maloqueira que sou, tem tudo a ver. Adoniran é um pouquinho da gente. Como você falou, é a voz do povo. É uma experiência bem próxima do que é o nosso cotidiano, principalmente para quem nasceu em São Paulo.

Eu sou paulistano também, então fazer esse filme na minha cidade, com os cenários das músicas do Adoniran… São os cenários de São Paulo e da evolução da cidade, da grande destruição, de perder a memória dos lugares afetivos, de onde você nasceu, cresceu… Nada disso existe mais, pois são edifícios no lugar de tudo isso. E é sobre isso que Adoniran também fala. Ele lamenta esse progresso desenfreado e desumano. No entanto, ele traz esses assuntos de maneira muito leve, coisa que só a arte pode fazer. Trazer consciência, fazer questionamentos, mas de maneira sutil e alegre.

Do período em que você conviveu e trabalhou com o rapper Sabotage, o que mais te marcou nessa relação?

O encontro com o Sabotage foi providencial, incrível. Foi uma sacada do Beto Brant, o diretor de ‘O Invasor’. Ele me botou em contato com o Sabotage para a gente reescrever as minhas falas a fim de que elas tivessem mais veracidade. Era muito literário o meu texto e isso não podia ser. Momentos antes de entrar em cena e filmar, eu estava lá mudando o meu texto e decorando o que eu tinha alterado junto com o Sabotage. O que mais me chamou a atenção foi a capacidade incrível dele de repertório, sabe? Esse repertório que só os poetas têm, de audição. De ouvir o povo falando nas ruas e guardar aquilo, ter na memória um repertório de saídas, expressões populares… Saber a maneira de falar as coisas… É algo que só os poetas fazem. Eles colecionam coisas que depois vão usar nas suas canções e poesias. Eu percebi isso nele e depois fiquei muito fã. Fui conhecendo o trabalho do Sabotage, que é uma coisa espetacular. E hoje, ele é cultuado pelas novas gerações dos rappers, né? Uma referência! Aqui perto de casa tem uma comunidade que tem o Sabotage pintado de braços abertos nos muros. Inclusive, eu fiz uma canção no meu último disco, ‘Sabotage está aqui’. Uma homenagem para o Sabotage. Eu sinto que essas pinturas que têm em vários pontos da cidade são feitas como se ele fosse uma espécie de santo protetor. É a impressão que dá. Ele está ali protegendo a comunidade, tamanha a importância dos versos desse poeta. Foi um privilégio poder ter convivido um pouco com ele.

Paulo, por favor, deixe um recado para os nossos leitores e todos os fãs que estão aguardando os Titãs em Portugal. E obrigada por essa conversa.

Compareçam lá porque vai ser uma grande celebração. São 40 anos juntos e é um momento único que não vai se repetir. Será muito especial. Eu espero todos vocês por lá com muita emoção para a gente cantar as músicas que a gente ama. Adorei a conversa, obrigado por me receber.

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