Em Abril de 1996, um protesto pacífico do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – colectivo social que, desde 1984, luta pela redistribuição de terras improdutíveis para fins comunitários – termina com o assassinato, pela polícia militar brasileira, de dezanove activistas. Este é um dos motes de “Antígona na Amazónia”, do espectáculo encenado por Milo Rau, apresentado em Lisboa, no Festival Alkantara. Este “teatro político” articula testemunhos de activistas e indígenas com a encenação de um clássico grego, a “Antígona”, de Sófocles. O resultado é uma reflexão crítica sobre um sistema que perpetua a desigualdade de direitos sociais e económicos, e ignora a diversidade individual e de cada povo.
“Antígona na Amazónia” é um espectáculo colectivo em toda a sua concepção: os quatro intérpretes em palco encenam momentos do referido massacre; em simultâneo, vemos, numa grande tela tripartida, imagens de elementos dos Sem-Terra a reencenar o mesmo acontecimento. Esta ressonância sublinha a tragédia, e, por conseguinte, a permanente resistência deste colectivo em prol dos povos indígenas e do direito à distribuição equitativa da propriedade, contra a discriminação e violência.
No texto de Sófocles, na disputa pela propriedade, membros da mesma família são os assassinos e os assassinados. Em “Antígona na Amazónia”, a luta pela propriedade é comunitária, e nunca individual. Para o passado não cair no esquecimento; para sublinhar que a resistência e a luta colectivas continuam. E, como numa tragédia grega, existe um coro (composto por elementos do MST), que comenta ou observa o que acontece; temos um “oráculo”, que fala do que é já inevitável (e talvez irreparável), o filosofo indígena Ailton Krenak, que adverte para um planeta Terra há muito tempo febril. Além disso, em palco, vai também sendo narrado o processo criativo que levou ao desenvolvimento de “Antígona na Amazónia”, desde a ideia até ao que estamos a assistir.
O passado está sempre à frente
Como refere a certa altura do espectáculo o actor Arne De Tremerie, para os povos indígenas, o passado está sempre à frente. Trata-se de toda uma cosmologia, concepção cultural e imaginário colectivo que são invadidos por outra modalidade de sociedade e pensamento.
Em “Antígona na Amazónia”, o passado está à nossa frente, nas imagens da tela, e ao vivo no palco, para lembrar que a luta pelas liberdades e pela Liberdade, contra as injustiças sociais, económicas, culturais e de género são causas de hoje. Contra a normalização do conformismo.
A articulação com a representação da peça de Sófocles salienta que a disputa desenfreada e egoísta pela riqueza individual contra uma ideia de comunidade, seja ela ligada à família, a um povo ou nação, pode levar à destruição do ser dotado de humanidade.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra é um colectivo activo presente em 24 estados do Brasil, que pensa nessa ideia coral e comunitária, de luta pelo bem-estar do humano, sem esquecer a particularidade e singularidade de cada um dos seus membros e na sua relação com o mundo natural.
Talvez tenhamos de continuar de reflectir sobre as questões que o Festival Alkantara e, em concreto, “Antígona na Amazónia” nos recordam: Até onde podemos ir? Quão próximo podemos chegar? Com as nossas acções, enquanto cidadãos e seres únicos. Com as nossas acções, enquanto colectivo.