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António Variações: Dar & Receber

— Está aqui o senhor Variações para ver as primeiras provas da capa — Quem aprova a capa é esta senhora que disto não percebo nada. — Vamos carregar no magenta e duas passagens de preto para a contra-capa não ficar anémica. De lado, ele sorria enquanto cumprimentava os homens das máquinas, um a um. O senhor Variações. Calça laranja e as maravilhosas pulseiras feitas com dobradiças de portões: — Dou-te esta. Por que parámos tantas vezes durante aquela curta caminhada entre a Cruz dos Poiais e a Calçada do Combro? Sentados nas escadas, aqui e além, à soleira de quase todas as portas e quem passava cumprimentava: — Ai o senhor Variações, dê cá um beijinho. O teu respirar, António, dificultava a marcha e eu tão confusa: — Queres vir noutro dia? Eu vou lá e trago-te aqui a capa, compro água… — Vamos devagar que não temos pressa, ou temos? — Temos tempo. Uma romaria de pessoas acenava alegre para o senhor Variações. Onde se sentia a vibração de um corpo forte e mais fraco que o meu. De braço dado contigo sentia-te tremer, suar: — Ficas aqui nesta sombra, vou e venho a correr… — Temos tempo, não temos? — Temos tempo. Levámos aquele último passeio numa confusa tristeza. Nada nele me era extravagante, da mesma forma que as mulheres o beijavam, abraçavam, e os taxistas apitavam para um adeus. Era assim, foi assim. O António, senhor Variações, sorriso terno: — Só quero ver a capa impressa, o que fizeste está muito bem feito. — Pois está. A minha arrogante “modéstia” acabou por lhe arrancar uma gargalhada e tosse. Mais uma paragem: — Esta pulseira fica-me tão bem! Agarra-te a mim, se eu não aguentar caímos os dois e não te rias porque tosses. (E por que tosses?)

António Joaquim Rodrigues Ribeiro, onde fica Amares? Onde o diabo deu três gritos e nasceste a 3 de Dezembro de 1944. Tens agora 75 anos de idade e chegaste a Lisboa carregado de letras e a tua voz espantosa, desafinada, nas tintas. Querias ser gostado, foste amado. Assisti, silêncio irritado, à galhofa tola por detrás do teu talento. Os artistas, António, são o centro do seu mundo e de uma forma surpreendente tu és o nosso mundo português antes de todos os que apareceram, descontando os que irão nascer. Variações, explicas, “é um nome elástico” a ideia era esta, perfeita. Não há Freud que se te chegue e quem tentar explicar-te cairá, ridículo, no chão. Os teus pés pairavam no ar enquanto o corpo subia, descia com a música trabalhada por outros, mas sem equívocos, tu eras a tua fonte. Não se contam histórias da intimidade mais íntima, da mesma forma que não se contam sonhos. Apenas as do homem público, popular, que reunia todas as condições para ser vaiado pelo povo que lavas no rio? Também o cantaste.

Mas se me é permitida a escolha do meu coração, a que aponta a morte com a mais bela das intensidades, escolho a que ainda oiço pela tua voz cansada: “Adeus que me vou embora/ Adeus que me vou embora// (…)// Vou daqui para a minha terra/ (…)//que eu desta terra não sou// que eu desta terra não sou//Tenho minha mãe à espera/ Tenho minha mãe à espera//Cansada de me esperar/ Cansada de me esperar// Naquela encosta da serra/ (…)// Vamos ser dois a chorar/ Vamos ser dois a chorar// À espera tenho o meu pai/ À espera tenho o Dar & Receber meu pai/ aos anos que o não vejo/ aos anos que o não vejo// O tempo que vai durar/ O tempo que vai durar// O meu abraço, o meu beijo/ (…)// Vim solteiro e vou solteiro/ (…)// vou livre de corações/ (…)// Se alguém me quiser prender/ (…)// já não vou dizer que não/ já não vou dizer que não/ Adeus que me vou embora Adeus que me embora vou”.

13 de Junho, dia de Santo António. Não há ano que me não lembre de ti, como recordo o pai e os manos, a tia. Não sei onde foi parar a pulseira que me deste e aqui sentada a pensar em dar & receber. Ninguém foi capaz de te inventar. Ninguém mais foi ou será como tu, a tantos anos luz da pequenez portuguesa, a mãe Deolinda que te criou. Somos muitos a chorar.

*Fátima Rolo Duarte é a autora da capa do disco Dar & Receber de António Variações. O músico trabalhou como marçano em jovem enquanto estudava à noite n’A Voz do Operário.


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