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As crianças, o cinema e a liberdade do imaginário infantil

É possível definir a fronteira entre o que é um filme com crianças e um filme para crianças? 

Atentemo-nos ao caso de “André Valente”, de Catarina Ruivo (2004). Seguimos o percurso de um miúdo de 8 anos, André Valente, que tenta encontrar saídas para a vida, apesar da tristeza e desamparo da mãe, da ausência do pai e das dificuldades de integração. As soluções que encontra surgem instintiva e naturalmente à medida que as coisas lhe acontecem. André confia na amiga mas também se revolta, ao perceber ficará sozinho, quando esta lhe diz que se vai embora da escola. Aproxima-se de Nicolai, o vizinho russo; segue-o até ao ringue, troca a sua bicicleta por uns patins e aprende a patinar. Procura um substituto do pai. Nicolai parte. André fica novamente desiludido e desamparado, nesta entrada na vida – transição entre ser criança, e um mundo em que a solidão e o abandono predominam. Por isso, depois de observar da janela uma última vez Nicolai e pedir que este repare nele e se despeça (pensamento mágico infantil), André deita-se pela primeira vez ao lado da mãe. 

Revolta e ousadia

A revolta de André é o que o move e torna mais audaz. O que diria uma criança da idade de André sobre este protagonista? Talvez acabasse a fazer as perguntas que André faz: por que é que se vão todos embora, por que é que o pai está tão longe e não quer saber deles, por que é que a mãe parece tão triste?

“André Valente” é um filme sobre a infância e para a infância? Entre a dureza e a audácia de um miúdo, os jogos e brincadeiras próprios da idade e os dias passados no apartamento, o que retemos é a coragem e a bravura de André pelo desconhecido mundo dos adultos. A inocência da infância é igualmente sinónimo de coragem, rebeldia, desilusão, desamparo e frustração. 

Em “O Espelho” (1997), de Jafar Panahi, acompanhamos uma menina que tenta ir para casa, depois de perceber que a mãe não a vai buscar à escola. A certa altura, no autocarro em que segue, ouvimos uma voz vinda de fora de campo: “Mina, não olhes para a câmara.” A criança olha de volta e diz: “Não quero mais representar”, tira as ligaduras de um braço (que faziam parte da personagem), e sai. Por mais que a tentem demover, Mina é inflexível. A equipa técnica fica sem saber o que fazer. O enredo torna-se no percurso possível que o realizador consegue filmar de Mina a ir para casa (e já não a personagem). 

Panahi revela o dispositivo cinematográfico para falar da arte de re-apresentar a vida; politicamente, interessa-lhe sublinhar a liberdade e a audácia de Mina, face à opressão da mulher no Irão. A criança não quer continuar a viver a pressão e exigências de ser actriz. Afirma a sua condição de criança e rapariga; quer ser ela mesma. No cinema de Panahi, as crianças são o motor de uma sociedade derrotada pelo medo, que vai perdendo a coragem para resistir e lutar face aos atentados contra as liberdades pessoais, sociais e de género. As crianças não sabem ainda tudo, mas reconhecem o mais importante. A liberdade é-lhes intrínseca. 

A influência e a liberdade do imaginário infantil

A palavra “criança” vem do latim creare, a mesma origem de criação e criatividade. A criatividade está na forma como os mais pequenos agem, se expressam artisticamente e como podem reagir a um objecto fílmico. Em 1939, Dante Costa escrevia: “o cinema é um desses poderosos agentes que vai influir sobre a sua moral, através de estímulos. E define cinema educativo como aquele que na criança “marca uma presença capaz de exercer uma acção benéfica.” O cinema com crianças, sobre o universo infantil ou para as crianças é mais complexo.

O que é a criança para o cinema? O que é que o cinema quer da criança?, pergunta Vicky Lebeau em “Childhood and Cinema”. Se a criança para o cinema pode ser a força motriz quando o adulto se deixou conformar e perdeu capacidade de lutar, de ter coragem, então a sétima arte procura expressar as complexidades do humano ainda em formação através da representação do ponto-de-vista e universo infantis. O que subjaz é a liberdade, ou, ao invés, as consequências do medo, da tristeza (que frequentemente vêm dos adultos). Assim, a criança nunca pode ser vista como objecto, mas como sujeito que mais do que representar, está a ser, a existir e a sonhar. 

Desde os primórdios do mudo ao neo-realismo, passando pelo contemporâneo, o cinema tentou sempre captar a essência do que é ser criança. Lebeau tece a comparação entre linguagem verbal e linguagem cinematográfica. “A criança tende a ser ‘descoberta’ no limite do que as palavras podem ser chamadas a dizer ou significar – limite que origina as questões de como comunicar a experiência da criança em linguagem (verbal), do que ‘nessa imagem’ sai fora, e por isso resiste, ao mundo das palavras. Em contraste, quando se trata da representação da infância, o cinema, com o seu acesso privilegiado ao perceptual, riqueza visual e sonora, parece ter vantagem: mais próximo da percepção, consegue aproximar-se mais da criança. Em particular, o impulso e capacidade para ver continua a ser investido como modos primordiais de descoberta do mundo das crianças e jovens.” Tendo a criança como tema, personagem ou protagonista, criadores e espectadores procuram, ainda que transversalmente, regressar à infância, compreender filhos e educandos, a ousadia e liberdade do imaginário infantil. 

O que procuram as crianças num filme? Continuar a sonhar. Verem as suas acções e ideias, por mais fantasiosas que sejam, num mundo que consegue ir além da realidade – nas suas narrativas, na forma como apresenta personagens realistas ou figuras irreais. Encontrarem no ecrã aquilo que dá conta da sua imaginação e criatividade, mesmo dentro de um quotidiano próximo do seu, que ao mesmo tempo o espelha na audácia de ser e fazer aquilo que elas mesmas ousam concretizar. Entre dragões, cidades inventadas, miúdas e miúdos com as suas dores de crescimento, o cinema expande a capacidade de reinvenção do ser humano.

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