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Rifkin’s Festival: Woody Allen, presente.

Com 85 anos de vida, nada a provar e pouca disponibilidade para arrumar as botas, Woody Allen regressa à Europa que teimosamente o resgata do desprezo a que foi votado do outro lado do mar. Chegado às paisagens idílicas de San Sebastian, escreve e realiza o 48º filme, postal citadino de encomenda, ilustrado pelas cores quentes da lente de Vittorio Storaro. Wallace Shawn é aqui responsável pela habitual recriação da sua persona. Poderia até ser uma mulher – como Jasmine, a sua Blanche Dubois contemporânea – mas, desta vez, a identificação é quase directa, não apenas pela interpretação de Shawn, mas pelo número de monomanias comuns à personagem e realizador. Shawn interpreta Mort Rifkin, um ex-professor de cinema que acompanha a mulher, Sue (Gina Gershon), ao festival de San Sebastian, suspeitando do seu interesse romântico no jovem realizador (Louis Garrell) que ela promove. A trama, sem grandes surpresas, tem mesmo reminiscências do filme anterior, A Rainy Day in New York, cujos protagonistas poderiam ser filhos de Mort e Sue. É o mote para uma primeira observação: O conjunto de neuroses que distingue o cinema de Woody Allen será explanado, independentemente do enredo proposto, pelo alter-ego de serviço, quase sempre um judeu intelectual, hipocondríaco e periclitante, agnóstico convicto em busca do sentido da vida, angustiado e inconformado com a ideia da morte. Em contraponto, a figura feminina de temperamento forte e emocionalmente distante, é o ideal que a todo o momento lhe escapa. Como condimentos, a crítica social ao snobismo dos meios artísticos, o pessimismo, uma cinefilia devota e uma aura de melancolia, a espaços rompida por uma ironia fina e trágico-cómica. 

Se muitos destes ingredientes estão presentes em Rifkin’s Festival, dificilmente se misturam para produzir um resultado coeso. O filme é sobretudo centrado no mundo onírico de Rifkin, em que memórias e desejos são convertidos em cenas dos seus filmes de eleição. Assim o filme se passeia, a preto-e-branco, pelas obras de Truffaut, Bergman ou Fellini (homenageando o cinema clássico), regressando ao ambiente do festival de San Sebastian (satirizando o novo cinema), e uma vez mais ao passado que é simultaneamente futuro: na recriação do jogo de xadrez na praia, a mais icónica cena de O Sétimo Selo (1963), a morte personificada por Christoph Waltz oferece conselhos para a vida. 

Há, no texto, uma indolência inegável do ponto de vista da coerência interna: um guião desconectado e personagens sem espessura, apesar da presença, desperdiçada, de Gershon e Garrell. Mais do que recontar a história de amor, atribulação e desencontro que tantas vezes escreveu e dirigiu, Woody Allen parece ter aproveitado a ocasião e o financiamento (que lhe vão escasseando) para voltar a filmar, falar de si mesmo e falar de cinema (serão das suas actividades favoritas), talvez com uma certa negligência, talvez um resquício da amargura das polémicas recentes, talvez pouca inspiração, mas ainda grande vontade. Apesar das limitações, o filme conserva um valor mínimo garantido presente numa marca autoral já gravada na história do cinema, com todas as suas particularidades, bastando dois minutos de ecrã para que percebamos de que(m) se trata: na selecção da banda-sonora, na narração, na história, nos trejeitos dos actores, na fotografia, na fonte e fundo preto dos créditos iniciais. De quantos cineastas poderemos dizer o mesmo? Consideremos, por isso, estar perante um produto de intervalo entre grandes filmes, um dispositivo frequente na sua longa carreira. Confiando nesse grande filme que virá, alegramo-nos, por ora, com o monólogo de um velho cinéfilo judeu, escaparate dos seus tormentos existenciais e declaração de presença – como se nos dissesse: Apesar de tudo, estou ainda aqui.

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