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“Porque há direito ao grito, então eu grito”

Este é o ano em que Clarice Lispector viveria o seu centenário. Assinalamo-lo num exercício de evocação, de um
certo malabarismo humano de quem procura o entendimento sobre as nossas curvas e contra-curvas interiores.

Dia 10 de dezembro realizou-se o centenário da escritora.

Disse um dia que pelo lado avesso trazia um ser que fazia do seu corpo casa – um cavalo preto e lustroso, inteiramente selvagem por jamais ter morado em qualquer outro corpo e jamais lhe ter sido aplicada rédea, nem sela. “É um bicho que chamado com autoridade, vem. Às vezes até come na minha mão. Mas quando eu morrer este cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito”. Pode dizer-se que terá dedicado toda a sua vida a descobrir este bicho, o seu passo e galope, os seus sons, a dualidade entre o seu portento e a sua fragilidade. Nascida Haya Pinkhasovna Lispector na Ucrânia, em 1920, cedo emigra com a família para o Brasil onde se instalam em Maceió, Alagoas. Mudam-se depois para o Recife que deixa para se fixar no Rio de Janeiro para estudar Direito. Em 1940 torna-se uma das primeiras mulheres jornalistas no país como repórter da Agência Nacional e dois anos depois do jornal A Noite.

Em 1943, com 23 anos, publica a sua primeira obra, Perto do Coração Selvagem – imediatamente aclamado e premiado pela crítica. No mesmo ano, casa-se com Maury Gurgel Valente, um diplomata, o que lhe vale a hipótese de viver em vários lugares à volta do globo.

Durante os anos de casamento publica um livro de contos, O Lustre e Cidade Sitiada e depois da decisão de separação regressa ao Rio de Janeiro onde se torna colunista em vários jornais – sendo a sua mais conhecida crónica, Feira de Utilidades, assinada sob o pseudónimo de Helen Palmer.

Em 1966 um brutal incêndio acidental, causado por um cigarro que se esqueceu de apagar, deixou-lhe o corpo profundamente marcado por queimaduras, a mais grave na mão direita (com a qual escrevia) que só não perdeu por resiliência médica.

Recuperada do acidente começa a dar sinais de um forte engajamento político tendo participado em várias manifestações pela democracia, nomeadamente a que teve lugar em Junho desse ano, quando centenas de intelectuais e artistas tomaram a linha da frente na passeata dos cem mil contra a ditadura militar.

Procurava sem cessar os limites de si própria, o ímpeto, e a libertação – estado que dizia ser “imenso, cheio de mistérios e dores”.

Absolutamente enigmática, dizia viver em esboços não acabados e vacilantes. Procurava sem cessar os limites de si própria, o ímpeto, e a libertação – estado que dizia ser “imenso, cheio de mistérios e dores”. Como resultado dessa procura das suas próprias profundezas, foi muitas vezes descrita como controversa, peculiar e fazia questão de jamais desmentir estas adjectivações; pelo contrário, cuidava-as como plantas e usava-as como forças propulsoras para ser quem era e mesmo testar ser quem não era. Não é portanto estranho que tenha participado no 1º Congresso Mundial de Bruxaria, na Colômbia, onde discursou sobre a ligação entre a magia e a literatura.

Dedicou os anos seguintes à tradução de autores incontornáveis como Júlio Verne, Agatha Christie e Edgar Allan Poe e publica o seu último romance, A Hora da Estrela e uma última selecção de crónicas, Para Não Esquecer, em 1977. Morre no final desse ano, um dia antes do seu aniversário, a 9 de Dezembro. Algumas das suas obras foram publicadas postumamente, como é o caso de Um Sopro de Vida e a colectânea de contos A Bela e “Porque há direito ao grito, então eu grito” a Fera. Além do inconfundível estilo, presença e escrita, Clarice deixou como legado o impulso para a pergunta, para a procura, para o mergulho interior constante – “persigo o que fica atrás do pensamento. É inútil querer classificar-me, porque eu escapo. Além disso a vida é curta demais para que eu possa ler todos os grossos dicionários a fim de por acaso descobrir a palavra salvadora. Entender é sempre limitado. Nem tudo tem que fazer sentido – não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível. Eu não: quero é uma verdade inventada, porque no fundo todos só queremos desabrochar, de uma forma ou de outra”.

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