Dina e Django – amor trágico entre a revolução de Abril
Trata-se de uma obra multifacetada e coerente, sobretudo na sua relação com o contexto português, que pode ser muito interessante de descobrir. O ciclo arrancou com “Dina e Django” realizado em 1981, em colaboração com o colectivo do qual fazia parte e foi fundadora – o “Grupo Zero”. Foi aliás uma marca de Solveig Nordlund, o espírito colaborativo, cooperativo e de interdisciplinaridade com outros colegas realizadores, actores, encenadores e técnicos.
A descoberta do amor nas vésperas da revolução
Estamos em 1974, dias antes da revolução. Vemos imagens da capa e páginas de uma fotonovela, escutamos uma voz feminina que lê as legendas. Descobrimos que Dina está numa cozinha a ler para a avó (concluímos que é analfabeta, como tanta gente da sua idade na altura), e que vivem na casa onde esta trabalha, um casal de classe média com um filho. A fotonovela narra uma história de amor, que alimenta as fantasias da miúda que anda no antigo 7º ano (9º ano actual), portanto, tem quinze anos. Dina dorme com a avó, à noite escuta a voz da sua imaginação que lhe fala do homem que há-de aparecer. Dina está a descobrir o desejo, e sonha com alguém por quem se possa apaixonar. Esconde-se na casa de banho, começa a escrever um diário a 17 de março de 1974. Para esta adolescente, os seus sentimentos aquilo com que fantasia, são mais importante que a revolução que está prestes a acontecer em Portugal.
Dina rouba uma camisola azul à patroa da avó, foge, veste-a no elevador às escondidas. Sentimos a ousadia da miúda. Solveig Nordlund está a retratar igualmente as desigualdades e relações de poder existentes antes do 25 de Abril, e que, de algum modo, se perpetuaram ainda no pós-revolução.
Dina sente-se livre com aquela camisola roubada à patroa da avó; é livre sem a bata branca igual à das colegas, onde está cozido o seu nome.
Dina sente-se livre com aquela camisola roubada à patroa da avó; é livre sem a bata branca igual à das colegas, onde está cozido o seu nome. Quando a vemos com a amiga no Largo do Carmo, onde dias depois acontecerá Abril, sentimos naquele belo plano de grua que nos eleva quase ao céu do Carmo, para depois voltar às miúdas de bata, e se focar em Dina, que tudo o que conta é a liberdade, e que esta está também ligada aos instintos do corpo e do espírito. É nesse sentido que as duas adolescentes pedem à funcionária da escola (que fica também no Carmo) para lhes guardar pastas e batas. Vão para um bar, desse bar seguem para outro porque lá dentro vêem alguém a dançar. É aqui que, mais tarde, Dina acaba por trabalhar, quando ainda está a estudar.
Dina sente vontade de ser mais, de ser outra pessoa, a sua ambição não é a de luta de classe – as histórias que inventa sobre a família de médicos, contra a qual quer ir e ser hospedeira são história de miúda. Dina quer sentir o que a patroa sente, quando se esconde a escrever no diário, e a escuta a ter prazer com o patrão. Ela quer apenas a camisola para se destacar. Quer a liberdade, o amor; não tem mais ninguém que a ame, além da avó, e esse amor não lhe basta.
Django fala já de Dina antes de os vermos juntos, tal como Dina sonhava já com ele na cama e na casa-de-banho.
As noites de Dina e a claridade da liberdade do povo
Numa noite, Dina, amiga e o dono do bar vão a um outro bar e a umas corridas de carros. Django olha-a, Dina olha-o. Não precisamos de mais. Fogem juntos no carro dele. E vemos depois o nascer do dia, o mar como horizonte. Alguma coisa mudou, e poderá mudar de uma maneira que não temos alcance ainda. Entramos naquilo na segunda parte do filme, ciclo imparável da vida da protagonista.
E a vida de Dina passa a ser a de Django: uma vida nocturna e marginal. Quem é ele: um homem com dinheiro e um carro. Mais velho, mas não muito mais.
Entretanto, acontece a revolução de Abril. A cineasta mostra imagens de arquivo, filmadas pela própria naqueles dias: militares sentados num varandim, os tiros no Carmo, a população eufórica nas ruas.
A cineasta mostra imagens de arquivo, filmadas pela própria naqueles dias: militares sentados num varandim, os tiros no Carmo, a população eufórica nas ruas.
Mas Dina está na sua vida vertiginosa com aquele homem, que nunca deixa de trajar de negro. Nessa noite de liberdade, estão ambos escondidos no bar, o antigo e emblemático Estádio, do Bairro Alto. Já enclausurados na sua relação.
Dina tenta resistir; ele não quer que ela estude, mas ela não desiste para não desiludir a avó e porque as pessoas que estudam têm mais oportunidades. Na extraordinária cena em que estão dentro do carro de Django num ferro velho, com a construção dos altos prédios do que viria a ser a Portela de Sacavém em segundo plano, Django diz-lhe que estudar não serve para nada. Pouco depois, vemo-la a estudar no “Estádio”, o bar convertido em café durante o dia. Django vai ter com ela, e falam dele como se de uma terceira pessoa de tratasse. Dina diz-lhe que o noivo que não a deixa estudar, ele responde que deve ser porque não a quer perder e não quer que depois ela se sinta superior a ele. Esta é a conversa mais lúcida e madura entre os dois, em que notamos sinceridade na confissão de Django.
Django é um homem só que podia ter encontrado uma saída na rapariga por quem se apaixonou. Ao invés, sem saber o que é a felicidade, e só conhecendo a marginalidade, bate-lhe, tem ciúmes, humilha-a, despreza, leva-a a roubar e, em alguns momentos, quase pensamos que a quer levar para a prostituição.
Dina deixa os estudos, as fantasias das fotonovelas, a escrita inocente do diário, a companhia na cozinha da avó. Django rouba a carteira a um homem que lhes dá boleia, sem Dina perceber, e esta é obrigada a fugir com ele (antes ele protegera-a do homem que a tinha tratado como prostituta). Noutra noite, Dina levada pelo namorado a atrair um homem a quem este dá uma facada para tirar dinheiro. Mais tarde, Django consegue extorquir dinheiro a outro indivíduo que queria pagar para ficar com Dina; vão mesmo a casa dele, Django furioso não encontra nada de valor, e sequestram mulher e criada. Numa destas noites de margem, Dina chega e escuta uma conversa entre a patroa e o marido. Aquela acusa-a de roubar a camisola e de ser um empecilho que só ali está porque o marido a quer seduzir. Dina chora compulsivamente na cama, a avó serena-a falando do “ponto” (teste), que se lhe correu mal, “o que lá vai lá vai”. Mas nada fica para trás já a Dina, que se sente um apêndice do mundo, e sem ter e conta o amor da avó, e desce ao abismo da relação de dependência com Django.
A vertigem trágica de uma miúda na Lisboa livre e revolucionária
Com a revolução, até a patroa se sente mais livre, e quer ir para as ruas festejar. Com a liberdade, um amigo do casal vai à cozinha e diz a neta e avó que elas não têm de estar a preparar a salada de frutas. A velha mulher responde que não sabe fazer outra coisa. confunde o que faz com quem é. Esta é a penúltima vez que vemos Dina com a avó. Aqui tudo podia ainda voltar ao que era. Depois sucede o irreversível à miúda que repentinamente se tornou mulher num mundo assustador.
Entretanto, acontece o 1º de Maio, a população vai para as ruas; vemos imagens desse emblemático Dia do Trabalhador de 1974. Dina arrasta Django para a manifestação do povo, onde mulheres vendem cravos e as pessoas passeiam bandeiras vermelhas e alegria.
Nada daquilo interessa a um homem que parece ter já nascido perdido, sem oportunidades e com instinto de maldade. Django aparece com uma metralhadora, é com ela que ameaça e amarra (com a ajuda de Dina) as duas mulheres na casa do homem que quis dar dinheiro por Dina. Apanham um táxi; taxista fala da revolução, eles estão desatentos e em fuga, na corda cada vez mais bamba da vertigem do destino. O taxista começa a desconfiar daquele casal; por causa disso, Django atinge o homem com a arma. No plano seguinte, vemo-lo com todo o sangue frio, no lugar do condutor. Quando despacham o corpo, é Dina quem dá os últimos tiros de metralhadora para matar o homem: Dina tornou-se numa criminosa. A voice over de Django diz que ela é que o matou, e conseguimos perceber o quão manipulador este sujeito consegue ser, mesmo consigo mesmo. Na noite de perdição, encontram uma segunda patrulha de militares (a primeira tinha sido com o taxista), põem-se em fuga pela cidade. Sem outro lugar para onde ir, escondem-se momentaneamente na casa dos patrões, para limpar o sangue das mãos, e Dina tirar uma camisa para o noivo.
Prisão em tempo de liberdade, uma notícia de jornal e Nicholas Ray
Logo depois, quando os vemos deitados, estão na cama de Django; Dina acorda em sobressalto, fala em sangue, e por instante sentimos alívio: tudo aquilo pode ser sido um sonho. Django abre a janela, para a avenida (Almirante Reis) e manda Dina telefonar ao homem a quem ainda querem extorquir dinheiro; percebemos que a realidade é aquela a que estivemos a assistir. Dina telefona à avó; Django desconfia; a avó aparece de táxi, e leva a rapariga. Não temos pena de Django, quem nos preocupa é Dina.
O desfecho acontece nas piscinas, entre o entusiamo das crianças a brincar e nadar, com a avó a tomar conta do filho do casal (a quem sempre deu afecto, e por quem sempre sentiu reverência): a avó pede à neta para esquecer aquele homem; Dina chora, ao mesmo tempo acredita que tudo pode voltar ao que era: recuperar o ano, fazer os exames em Dezembro. Depois, num magnífico plano de grua, escutamos a voz em off do altifalante a anunciar para as crianças saírem da água. Avó e neta permanecem no mesmo lugar, Dina com a cabeça tombada na mesa, a avó a ampará-la; escutamos a voice over da protagonista: ficou para sempre com aquela imagem, as rugas de preocupação da avó, a mulher que sempre fez tudo por ela; depois a polícia apareceu, diz a voz.
Tudo o que resta, no desfecho, é uma fotografia num jornal, em que vemos Dina e Django lado-a-lado no tribunal; lemos que apanharam a pena máxima.
Quatro notas finais sobre este vertiginoso, belo e trágico filme de Solveig Nordlund.
- Quando escutamos a avó a pedir que ela deixe aquele homem, não queremos acreditar que Dina possa ser condenada, mas pressentimos que ela não deixará Django. Este fê-la sentir vida, amor, um amor violento (ele chega a bater-lhe). Dina é uma personagem que não vivia na noite, não era da noite, e que, como as personagens de Nicholas Ray, em “Filhos da Noite” (“They Live By Night”), não foi “proper introduced to the world she lives in”; ao contrário de Django, que estava já perdido para quando a conheceu.
- Por isso nos lembramos de Ray, como certamente a realizadora se lembrou. Recordo a cena em que nos é introduzida a família para quem a avó trabalha. É um momento contrastante com o anterior, em que tínhamos estado com neta e avó a escutar a fotonovela: na sala, escutamos a mais emblemática sequência de “Johnny Guitar”, quem está a ver o filme é a patroa e o filho. A avó entra para ir buscar a gelatina que o miúdo não quer comer, e que Dina come logo depois, ainda agarrada à fotonovela.
- É nestes detalhes que, enquanto nos narra a história – que pode ter aparecido num jornal – de um casal de assassinos, Solveig Nordlund revela o contexto e estratificação social, económica e mesmo intelectual de um Portugal antes e pós revolução de Abril. E imaginamos que entre todas as notícias sobre Abril, apareceu aquela de Dina e de Django, e que num gesto criativo de imaginação a realizadora quis falar sobre uma dilacerante entrada na vida de uma miúda.
- Sobre essa fotografia de jornal escutamos a voz de Dina dizer que está agora separada de Django, sentimos o que prevemos na cena da piscina – essa dependência emocional do homem que a fez viver coisas “na ponta da espada”, perigosas e com consequências irreparáveis. A voz de Django diz que viver aqueles momentos com ela lhe bastaram. E mesmo daqui, neste diálogo, duplo monólogo interior, concluímos sobre o abismo do amor entre aquelas duas pessoas.
Em suma, as convulsões de Abril deram-nos a liberdade, o contentamento e a esperança. Em contraste, Solveig Nordlund mostra um outro lado, com a prisão de uma miúda que só queria ser e sentir-se livre, feliz no e com o amor, e que, não sabendo que a vida podia ser cruel, se vê num túnel escuro.