Em 1992, Portugal tinha acabado de entrar na Comunidade Económica Europeia. O turismo era uma actividade que se acreditava que promoveria o crescimento económico e o equilíbrio social.
Nesse ano, Solveig Nordlund, realizadora sueca naturalizada portuguesa, filma “Até Amanhã, Mário”. O turismo eclodia na ilha da Madeira. É lá que se passa a sua terceira longa-metragem.
Ao longo de um dia, e entre as suas fantasias de Mário (João Silva), vivemos a sua relação com outros miúdos de rua, estrangeiros e autóctones. Percebemos as discrepâncias entre os que estão ali por lazer e os que, tão novos, tentam sobreviver – terão um destino trágico (como Marcelo, o rapaz que entra na prostituição).
Indirectamente, podemos comparar Mário com os miúdos de “Filhos da Tormenta”, com Bruno de “Ladrões de Bicicletas” (filmes de Vittorio de Sica), ou Edmund de “Alemanha Ano Zero” (de Roberto Rossellini). A tragédia em “Até Amanhã, Mário” vive-se no quotidiano do miúdo que quer ser baleeiro, numa altura em que a caça à baleia já não se praticava. Eis a fantasia de Mário. Mário sonha a dormir ou acordado: imagina que é dono de um barco, e é recebido, de arpão na mão, por vários miúdos que lhe acenam da costa.
É com um pescador (Vítor Norte) que Mário estabelece maior intimidade. Vão juntos de noite à lota; na carrinha, cantam; o homem dá-lhe dinheiro e bebem alguma coisa, depois da venda do peixe. O homem sente carinho por Mário, trata-o como um homem, mas ele é uma criança. Tudo fica progressivamente mais duro. A mãe será operada; os médicos consideram o “caso perdido”. Porém, é na noite seguinte, de novo na carrinha e ao lado do pescador, que termina o filme. Entre a amizade de miúdo e graúdo (este garante que no dia seguinte vai buscar a mãe de Mário ao hospital), a dura realidade (precisa de um ajudante na pesca), e com Mário imaginando-se na caça à baleia. Mário é obrigado a crescer a cada momento da vida dura para a qual foi lançado. Mas nunca deixa de sonhar: e quem na imaginação está no barco de pesca a ajudá-lo na caça à baleia são os outros miúdos de rua.
Visão lúcida sobre o crescimento do turismo
Passaram trinta anos sobre a filmagem de “Até Amanhã, Mário”; importa salientar a visão lúcida que Nordlund tinha sobre o advento do turismo. Mais do que abonar as estruturas económicas, o turismo revelava a “outra” ilha da Madeira do início dos 90: o isolamento insular; a miséria de populações para quem a actividade piscatória era a única saída; os miúdos que andavam ao “deus dará” pelas ruas, vivendo de esquemas que aprendiam uns com os outros. “Os Cinco” do filme conhecem-se porque têm o mesmo destino: a sobrevivência aventureira nas ruas.
Solveig Nordlund articula momentos cómicos e situações dramáticas com apontamentos de crítica social, ressalvando uma profunda humanidade e empatia pelo que de belo e trágico acontece naquele lugar.
Solveig Nordlund articula momentos cómicos e situações dramáticas com apontamentos de crítica social, ressalvando uma profunda humanidade e empatia pelo que de belo e trágico acontece naquele lugar. No Museu da Baleia, o funcionário e amigo de Mário, não consegue arranjar um brinquedo em forma de pássaro. Vão juntos ter com o pároco (Canto e Castro), que sai em busca de solução. O jovem empregado, a quem o padre pede boleia aprende inglês escutando cassetes, diz a um casal que não tem lista em português: aquele é um restaurante “internacional”. As ruas são estreitas, e o trânsito aumenta a cada minuto que o padre permanece na loja. A confusão de carros expande-se pela ilha. O padre sai in extremis, salva-se da multa que um polícia estava prestes a passar com palavras “santas”. O rapaz volta ao restaurante e reitera aos clientes portugueses: aquele restaurante é “internacional”.
As desigualdades e o “poder” do dinheiro
O dinheiro comanda a sociedade: o médico dá 5000 escudos a Mário, condescendente com a situação débil da sua mãe; o rapaz do pé boto consegue extorquir moedas aos turistas com a ajuda do empregado de um bar. Os miúdos têm de levar todos os dias certa quantia para casa. Por causa disso, outro dos “cinco” passa frio, atirando-se à água para ver se os estrangeiros atiram moedas. Um deles finge atirar um dólar; e humilha a criança: “eles têm de aprender”, diz. Um turista conta a Mário que apanhava baleias, que escuta sem perceber, fascinado com a pequena baleia que o outro traz na camisa. O homem acaba por lha dar de presente. Mário foge com a “baleia”. Não está habituado a que lhe dêem alguma coisa sem quererem algo em troca. Mário quer dinheiro por umas flores que roubou; um casal de turistas faz a “troca”; e quer também filmar aquela situação. Como se a miséria infantil fosse um exotismo. Mário e os outros miúdos tentam apenas sobreviver no mundo cruel dos adultos.
O filme foi “mal visto” pelo Governo Regional, que queria promover o idílio do Arquipélago da Madeira.
O filme foi “mal visto” pelo Governo Regional, que queria promover o idílio do Arquipélago da Madeira. Hoje, mais do que nunca, é crucial olhar para filmes que, há trinta anos, davam já conta das consequências do crescimento do turismo: desigualdades sociais e económicas, falta de oportunidades iguais, e escamoteamento do fosso entre desfavorecidos e privilegiados.
Em quem se tornaram os Mários que andavam pelas ruas do Funchal? Para onde nos leva o turismo desenfreado em Lisboa e em todo o país? Questões que o terno, atento e mordaz filme de Solveig Nordlund ergue ainda em 2022.