Por um lado profundas alterações positivas que são consequência directa do Portugal de Abril: da melhoria das condições de vida dos trabalhadores e das populações, das liberdades, do alargamento do acesso à educação, do papel do Poder Local democrático (hoje o principal financiador público das actividades culturais). Todo um mundo da cultura que transita da resistência cultural para a procura de um alargado eco popular. Uma muito ampla atenção e reclamação pública e democrática de acesso a toda a cultura, de defesa e apropriação do património cultural material e imaterial, com forte repercussão em todo o território.
Um importante acréscimo no número de equipamentos culturais (entre 1970 e 2000 o número de museus duplica e tem o triplo de visitantes, o número de bibliotecas é quase 7 vezes maior e tem perto de quatro vezes mais utilizadores). Um número de jovens com formação artística e científica especializada que cresce exponencialmente embora, na sua maioria, não encontre depois realização plenamente satisfatória e profissional das competências adquiridas.
Importantes alterações nos hábitos e nos padrões de consumo cultural, em paralelo com um enorme acréscimo no acesso e na difusão cultural através de meios audiovisuais e informáticos.
E, por outro lado, aspectos de evolução nacional resultantes tanto de políticas de retrocesso face às dinâmicas que Abril gerara como do processo de integração europeia e – sobretudo a partir da viragem do século – das políticas ditas “de austeridade”. Todas têm uma profunda repercussão cultural directa e negativa. Duas têm maior importância: a destruição dos sectores produtivos, nomeadamente do sector agrícola, e a aceleração do processo de concentração urbana e metropolitana (sobretudo na faixa litoral entre Setúbal e Viana do Castelo) em paralelo com uma brutal desindustrialização e generalizada desregulação dos horários de trabalho. Nestes processos, ao mesmo tempo que tende a acelerar a desagregação do universo cultural secularmente sedimentado no mundo rural, desagrega-se igualmente o rico universo da cultura urbana popular e operária, um e outro cilindrados por formas de cultura mediática de massas inteiramente mercantilizadas.
As formas de consumo cultural atingem uma significativa polarização. De um lado, tendem a fragmentar-se quase até à individualização. No polo oposto, concentram-se em grandes realizações de massas promovidas sobretudo por um sector “industrial cultural” (designação inequivocamente assumida) poderosíssimo nos planos técnico, financeiro e mediático. No fundamental, uma “indústria” globalizadora mas, no nosso país e não só, fortemente centrada no universo anglo-saxónico. Um sector cuja dimensão artística não deve ser subestimada, mas cuja repercussão cultural é sobretudo a da forma de consumo que promove: passiva, padronizada e em geral acrítica. E alienante.
O problema não é exclusivamente português, nem no tempo nem no espaço. A fronteira que se apontou no sector cultural é a da entrada em força do capitalismo na área da cultura. Antes valorizada sobretudo pela dimensão simbólica, de prestígio e ideológica das expressões culturais e da sua ligação ao poder, o capitalismo acrescenta-lhe a identificação do sector cultural enquanto potencial de criação de produtos dirigidos a um valioso e muito alargado (e fortemente homogeneizado) mercado. Tudo a ganhar.
Não se tratará apenas da produção de mercadorias culturais, mas da mercantilização tendencial de todo o universo da cultura, incluindo a cultura dita erudita.
O que daí decorre reflecte-se numa inversão nas políticas públicas, e no nosso país elas são – sobretudo nas últimas décadas – claramente elucidativas. Não se perdeu tudo o que fora adquirido. Mas poderia ter-se progredido ainda se não tem sido tão cerceado o impulso revolucionário de Abril, se não tem sido bloqueado o desenvolvimento e o progresso do nosso país por demasiadas décadas de políticas que escolheram outro caminho.
Um caminho geral de privatização e desresponsabilização do Estado. De redução e esvaziamento de toda a estrutura da Administração Central com responsabilidades na área cultural. De financiamento público central permanentemente reduzido e insuficiente, exponenciado pelas políticas “de austeridade”. De abandono de qualquer intenção democratizadora no acesso à fruição, e sobretudo no acesso à criação. De um débil sistema de apoios públicos que visa, não dinamizar, mas instalar uma estéril competição entre instituições, entidades e criadores. De um sector cultural como laboratório piloto de todas as experiências de precarização. E, nos dias de hoje, de um cenário de exclusão e de “cancelamento”, na fronteira da censura cultural.
Duas realidades e duas dinâmicas opostas. Mas, tal como sucede em todas as outras frentes da luta popular, a dinâmica de Abril pode defrontar-se com grandes dificuldades, mas não está decerto derrotada. A reivindicação popular à Cultura é inseparável da luta por todos os outros direitos. Uma das suas raízes é a reivindicação dos “3 oitos”: 8 horas de trabalho, 8 horas de descanso, 8 horas de lazer. Vem do século XIX.
Hoje, a jornada de trabalho poderia e deveria ser bem menor. Ficaria mais tempo para o mais importante “oito”. O do tempo para o divertimento, o encontro, a associação, o entretenimento, e sobretudo o enriquecimento cultural, o desenvolvimento das capacidades de cada um de entender, de escolher e de criar. O caminho da Cultura integral.
Abril abriu esse caminho, e ainda está aberto.