As ruas de Lisboa têm uma agitação própria. Os dias correm por elas com azáfamas de muitas vidas. Mas se em qualquer uma delas se der o acaso de nos encontrarmos com o silêncio e se conseguirmos ouvir adiante desse silêncio, não será estranho que ouçamos a voz de Carlos do Carmo, como um pregão, um aceno, uma onda que desagua devagarinho, onde o Tejo encontra a sua margem. 

“Eu lembro-me dessa Lisboa da fadistagem, até o cheirinho que a cidade tinha. Íamos ao Faia todos os anos, e ouvíamos o Carlos. Pensava sempre que Lisboa era aquele homem e aquele homem era Lisboa”, disse-nos Pedro. “Eu era pequena e pedia à minha avó um xaile e num cantinho da sala cantava o Canoa do Tejo, só para no fim poder ouvir o meu avô dizer: melhor que tu, só cantado pelo Carlos do Carmo”, acrescenta Isabel. “Fado. Para mim, Amália era o seu lado feminino, e Carlos do Carmo, o masculino. Hoje, no reino dos céus, lá onde habitam os deuses, haverá um bonito encontro de fado e poesia” disse Rosa, no dia da sua morte.

Carlos do Carmo mora na memória de muitos de nós. Foi para muitos companhia da vida inteira, no rádio, nos discos, nas poesias ditas e cantadas ao ouvido. Deixou-nos no primeiro dia do ano.

Certamente que sem ele o fado não seria hoje o que é: pelo tanto que cantou, como cantou, com quem cantou, a quem pediu poemas, por todos os fadistas mais novos que “levou pela mão”.

Filho de uma importante fadista, Lucília do Carmo, deambulou por outros destinos e caminhos, até regressar inevitavelmente ao seio do fado quando assumiu a gestão do Faia, onde começou a cantar publicamente.

Em 1964 grava uma versão do Loucura que pelo engenho e audácia incendeia o mundo do fado. Incorporou sem pudor todas as suas influências musicais que não se limitavam ao fado, traço que manteve ao longo de toda a carreira. 

Na sequência da distinção enquanto melhor interprete pela Casa da Imprensa em 1967, grava o seu primeiro álbum e lança assim a primeira pedra do “castelo” que viria a erigir no meio. Um dos pontos altos da sua carreira viria a acontecer com o lançamento de Um Homem na Cidade, álbum clamado como inovador pelas suas composições, onde apenas canta poemas de Ary dos Santos. Esta foi aposta que manteve ao longo do tempo, trazendo ao universo do fado autores como António Lobo Antunes, Júlio Pomar, José Saramago. E também musicalmente se manteve ousado editando álbuns conjuntos com Bernardo Sassetti ou Maria João Pires. 

Envolveu-se sempre com a vida da cidade, com as suas pessoas e n’A Voz do Operário não podemos deixar de lembrá-lo, pela relação profunda que connosco desenvolveu. Em 1992 foi-lhe atribuído o título de Sócio Honorário e entre tantos outros gestos, em 2008, o fadista doou as receitas do espectáculo comemorativo dos seus 45 anos de carreira à instituição, num momento particularmente difícil. Em 2017, na primeira Gala de Fado d’a Voz do Operário, foi-lhe atribuído o Prémio Solidariedade, como expressão desta relação de companheirismo tão cúmplice.

A par de todo o sucesso do seu trabalho nunca deixou de ser um homem de fortes convicções, crítico da noite fascista, defensor da liberdade cívica e artística. Quando em 2014 lhe foi atribuído um Grammy Latino que celebrava todo o seu percurso (o primeiro atribuído a um artista português) não recebeu os parabéns do então Presidente da República, Cavaco Silva – muitos supuseram que talvez como consequência da sua proximidade com o Partido Comunista Português – anos mais tarde, quando numa entrevista lhe perguntaram se a falta de apoio o havia incomodado, respondeu com um franco sorriso que não, “considerei até um elogio”.

A cidade, o país e o povo sentirão falta das suas cantigas, do aconchego das suas palavras, do embalo da sua música. Devemos ficar atentos ao lugar depois dos silêncios, por todas as ruas, certamente que aí, o encontraremos sempre.

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