Opinião

Baptista Bastos, e o cristal das palavras

“Não posso perdoar ao fascismo o ter-me sequestrado os sonhos e sonegado a adolescência e a juventude.” B-B, in “Diário da Realidade como Simulação”

Havia na cidade, nesses dias largos, mesmo cercados de grades, um território respirável, o Bairro Alto dos jornais, de O Século, do Diário Popular, do Diário de Lisboa, de A Bola, esse circunscrito espaço de margens e de afectos, polvilhado de ardinas e botecos, de gente miúda, do povão galhofeiro diariamente humilhado e ofendido, a azáfama das redacções, o cheiro a chumbo das tipografias; havia nos jornais, em alguns jornais, uma atmosfera de cumplicidade, um sentido deontológico sem normas de figurino, quase mítico, de urdir as notícias, de reinventar os dias mesmo sabendo que um lápis azul vigiava os t extos. Havia jornalistas e escritores que se espalhavam pelos tascos da zona, ou pela Brasileira, a polemizar, a tertuliar, em volta de bejecas ou de um bom tinto com corpo e espírito, sobre o tempo cercado da ditadura, as malfeitorias do fascismo, ou de um filme, um novo livro, um poema com farpas de vento que escapara à censura. 

O Bastos foi o último representante de um estilo inteiro, lírico e visceral, de paixão sem manhas, de olhar a cidade e de no-la dar a ver nos seus amplos sentidos, com casas, gentes, bairros, vida a fervilhar nas ruas, também as nódoas e o esplendor, a miséria e a luta, a exaltação dos nomes incontornáveis da nossa cultura (Carlos de Oliveira, Redol, Sena, Amália, Saramago), o ranço boçal dos próceres do salazarismo, a ignomínia e a dignidade.

B-B, a dizer-nos que “o jornalismo é uma disciplina superior da literatura” e nós, hoje, sobrepujando as excepções que não impedem o deserto, a ler nos periódicos uma prosa coxa, e pior, manchada de subserviência, rendida aos ditames do capital e das agências que controlam, e tentam impor, o pensamento único.

Tanta tarimba B-B, desde os dezoito anos, tanta noite de banca, tanta conspiração à mesa dos cafés, ou nas tipografias – gente fixe, os tipógrafos! –, tanta miséria recolhida nas ruas da cidade, e que dizer da fome!?, a indignação a vir à pena, a revelar-se na crónica e na prosa luminosa dos seus livros, desde o inicial O Secreto Adeus, refinando até ao derradeiro A Bolsa da Avó Palhaça, passando por esse belíssimo romance que é Colina de Cristal, dorido, nostálgico percurso pelo espaço de Lisboa que o viu nascer.

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