O escriba destas crónicas recebeu como presente de Natal a obra de António Mega Ferreira intitulada Roteiro Afetivo de Palavras Perdidas, onde o autor escreve que “quando viro o retrovisor da memória para o percurso da minha já longa vida, é sob a forma de palavras que as diversas etapas, episódios ou afetos me aparecem. Muitas dessas palavras eram para mim correntes à data dos sucessos que nomeiam e descrevem; mas, resgatadas hoje parecem-nos obsoletas, fora de uso, inutilizadas.”

Li o livro, de fio a pavio, aproveitando a tranquilidade que normalmente o dia seguinte à véspera e à consoada oferece e no dia 26 escrevi uma carta a António Mega Ferreira em que, de forma canhestra em relação à sua prosa, fazia referência afetiva a algumas palavras que ouvira na minha infância na nossa comum Mouraria. Não pus a carta no correio, mas envio-lha agora desta maneira depois de no dia 27, logo de manhã, ter recebido a brutal notícia da sua morte.

Lisboa, 26 de Dezembro de 2022

Caro António Mega Ferreira,

Cumpre o seu Roteiro Afetivo de Palavras Perdidas aquilo que se pede à literatura – sugerir no leitor emoções que tanto podem vir do passado como aquelas que logo ali surjam e que o autor e o leitor se enleiam e que da cabeça destes brotem recordações e se engendrem novas ideias. Foi o que ocorreu comigo – das profundezas da memória vieram lembranças e palavras que lá estavam quedas há muito.

Nado e criado na Mouraria também, mais de uma dúzia de anos antes de si, filho da burguesia, fui por bambúrrio colega na Escola da Câmara nº 44, no Largo do Caldas, de putos, filhos do proletariado e compincha tolerado na púrria da Madalena. Púrria, aliás, fracota. Este espevitar da memória que o seu livro causou leva-me a passar das palavras que ouvia para as expressões que ouvia: …é pera ou manteiga? diziam os rapazes do bairro com a cabeça metida no buraco que era a bilheteira do Salão Lisboa, mais conhecido por “o piolho”, o cinema de reprise que havia junto do Arco do Marquês do Alegrete – se de lá viesse a resposta pera, eram “cobóis”, o Tomix e o seu cavalo Tony, iam; se fosse manteiga, a Greta Garbo, donzelas de olhos revirados e galãs sedutores, iriam ou não, conforme. 

Está prenhe a sua lista das palavras perdidas, mas aqui o desafio para uma espécie de sabatina. Sabe a origem da palavra bera, que hoje quase ninguém usa mas que era frequente no meu tempo? Foi a minha mãe, que nasceu no princípio do século passado, que me disse. Andava ela pelos seus 25 anos e havia no Chiado uma loja, representante de uma fábrica de cristais e diamantes artificiais checoslovaca, de nome BERA, que encontrou uma engenhosa maneira de fazer propaganda dos seus produtos – espalhava falsos diamantes num tabuleiro forrado de veludo negro, dizendo que entre eles havia um verdadeiro e que mediante um pagamento qualquer cliente podia escolher um entre todos os outros, pensando ser aquele que escolhia o verdadeiro. Feita a escolha mostrava-o ao vendedor que, triunfante, dizia invariavelmente – esse é BERA, mas em nada se distingue do verdadeiro que lá está (estaria?) e assim bera tomou o significado com que hoje já figura nos dicionários de “coisa sem valor, falsa” e também de “indivíduo sem categoria, zé-ninguém ou borra botas”.

E por aqui me fico em matéria e que o seu saber ainda pode dar pano para mangas.

Um abraço de amizade e admiração

Artigos Relacionados