A poesia que olha, como compromisso e testemunho, para o real, mesmo quando o real que percecionamos nos chega filtrado pelos média; a poesia que se expõe actuando sobre o corpo dos dias insanos, poesia de esconjuro e de revolta, de resistência em nome da justiça e de um devir mais pródigo e igualitário parece, nestes tempos de feroz e suicidário individualismo, condenada ao fracasso. A democracia, mesmo esta burguesa e minguada, ainda atrelada – graças a alguns valores de Abril que ainda se mantêm, dado haver quem por eles lute -, a uma aura de júbilo e de festa que subsiste nas ruas quando os dias maiores de Abril e Maio nos convocam, permite-nos, mesmo cercada pelos falcões do passado e pela usura reinante, algum espaço de respiração, de inconformismo e de esperança.
A poesia, a arte em geral, que pensa o nosso tempo e dele tenta expurgar o lixo que o sufoca, ainda é possível? Já vivemos tempos bem mais violentos, política e socialmente ignaros, e sobrevivemos. Já não temos a PIDE, mas vivemos numa sociedade, diz-nos o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, “que é uma fusão de O Admirável Mundo Novo, de Huxley, e de 1984, de Orwell. Estamos sob vigilância constante mas, paradoxalmente, sentimo-nos livres. Na realidade, o smartphone, que promete uma ideia de liberdade, é uma prisão”.
O poeta é, neste complexo mundo, alguém que pensa, que se interroga, que nos questiona, que nos quer libertos de toda a ganga que tende em alienar-nos. Ana Abel traz para este seu livro esse desassossego, essa humana inquietação do Ser, logo presente no título SER GENTE, afirmação que nos coloca “de pé”, que nos convoca para o mais digno da nossa condição. É de pessoas e da dignidade de Ser Humano, que estes poemas falam, num tom claro e coloquial. Fala-nos de vidas suspensas, ou à margem, da alegria e do amor, fala-nos de Abril, mas de um Abril habitado, sempre como modo de respirar, luz, farol, acto fecundo e libertário.
Ana Abel, poeta que traz nas veias o combate urdido em dias cruéis, a insubmissão como lugar do Ser, não deixa por isso que estes tempos, em que a usura nos fere até aos ossos, lhe tolha a lira e a impeça de cantar, de escrever poemas onde expressa o escárnio e a revolta, o amor e a determinação colectiva, que de longe vem como desígnio inscrito na pele, de mudar o mundo.Estes poemas de Ana Abel, em SER GENTE, rumando contra as vergonhas do nosso tempo, são o que dizem, a voz que neles habita é uma voz lúcida, que olha os “outros” de frente, que dos poderes conhece as manhas, os ardis e os embustes e sobre esse poder e seus sequazes, desfere a lança das palavras as que, por perenes e justas, mais magoam. Partam para este livro de olhos, mente e braços bem abertos. Verão que vale a pena, porque |A Poesia é só uma/Nasce de um olhar que vê/De um sentir que se importa/De um escutar que ouve/De uma alma que se comove/e sente.
Ser Gente, de Ana Abel – Edição MODOCROMIA/2023.