Dizia há uns dias um velho dos que se reúnem no jardim do meu bairro:

…o senhor Zé da leitaria trespassou a leitaria…o novo dono já começou as obras de remodelação. Já de lá vi sair o balcão e pedaços do lambril de mármore que lá havia e que era bem bonito…

Disse outro velho:

…ele mora mesmo em frente da loja, no número 10, tenho-o visto a passear as netas ou à janela, com uma boina, a fumar e a olhar para a loja…ele foi dos primeiros comerciantes a estabelecer-se aqui, no bairro…

Calaram-se os velhos e era fácil adivinhar que uma onda de nostalgia terá passado pela mente de todos eles, até que um quebrou o silêncio e desfiou recordações:

…quando vim para aqui morar, quando casei e casei novo, havia as casas de renda limitada, as ruas ainda não estavam asfaltadas, havia poucos prédios já construídos e muitos inacabados e os construtores, que então eram chamados “patos bravos”, quando viam alguém na rua de nariz no ar a ver se havia escritos (o quadradinho de papel branco que se punha na vidraça das janelas a informar que a casa estava para alugar) abordavam as pessoas, perguntavam-lhes se andavam à procura de casa, convidavam-nas a ver aquelas que tinham acabado de construir, gabavam o número e o tamanho das “assoalhadas” e diziam a renda pretendida, acrescentando quase sempre que aceitavam regatear esse valor.

A oferta e a procura entendiam-se.

Isso é bem verdade, disse um outro velho até então calado. Era fácil aos da classe média, com emprego ou rendimentos assegurados, arranjar casa mas havia muita miséria, muita gente que vivia em barracas ou em partes de casa, havia até os que em Monsanto e no Vale de Alcântara viviam em furnas. Havia muita miséria e as casas que a Câmara começava a fazer em Alvalade não chegavam para todos, mas é certo que havia possibilidade de escolha para alguns sem que as pessoas ficassem presas a uma casa, a um empréstimo e a um banco para toda a vida.

Havia para alguns, é certo, inclusivamente a possibilidade de arranjar casa perto do sítio onde trabalhavam. No número 14 da avenida onde eu moro vivia na cave um artesão com a família a fazer cestos com vime que vinha da Madeira; num anexo das traseiras um casal fabricava malas de senhora que eram vendidas em feiras e morava no 3º andar direito; no andar de baixo, no 2º esquerdo, morava o sr. Fernando, dono da mercearia que havia no rés-do-chão, com montra para a rua; a senhoria, rica herdeira alentejana, vivia no 4º andar e na cave vivia também a porteira.

Os filhos destes e de muitos mais andaram na mesma escola que era perto de todos e brincavam no mesmo jardim onde um senhor que tinha sido locutor na Inglaterra ia todas as manhãs andar de bicicleta…

É um bairro feliz. Pena é que não seja toda a cidade assim. Uma cidade onde cada um viva onde quiser viver…

Para isso só é necessário que seja cumprida a Declaração Europeia do Direito à Cidade – o direito “a poder escolher num parque habitacional salubre, com uma oferta suficientemente ampla e a um preço razoável, uma casa que assegure tranquilidade e respeito pela privacidade pessoal e familiar.”

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