Opinião

Voz dos Livros

O Diabo Foi Meu Padeiro, de Mário Lúcio Sousa

Mário Lúcio Sousa é um dos autores mais inovadores e interessantes da sua geração, e da literatura escrita em português. Nascido em Cabo Verde, no Tarrafal, em 1964, licenciado em Direito pela Universidade de Havana, foi Ministro da Cultura do seu país, no mandato iniciado em 2011, e um autor de vastos e plurais recursos, com diversos títulos publicados, entre poesia, teatro e romance, contando já no seu currículo com os Prémios Literários Carlos de Oliveira e Mi- guel Torga e o Prémio do P.E.N. Clube.

O Diabo Foi Meu Padeiro, é um dos livros mais crus e assombrosos até hoje publicados, sobre o inferno que foi o Campo de Concentração do Tarrafal, a partir de 1936, e a forma infra-humana como o salazarismo tratou os presos políticos para aí transportados. A estrutura narrativa de Mário Lúcio, atém-se às memórias de alguns resistentes que sobreviveram nesse espaço da morte lenta e aos testemunhos das gentes de Chão Bom, referindo os nomes desses antifascistas, as suas vivências, as torturas, a fome, a sede, as doenças, a capacidade colectiva de reinventar a vida para afugentar a morte, numa plêiade de elementos históricos que o autor carreou para a narrativa, traçando desse campo um retrato chocante, que é, a um tempo, brutal e humano, rigoroso e lírico sobre o tempo maior da vergonha que a ditadura, na sua fase mais agressiva, na realidade foi, trazendo para o campo da arte literária, com invulgar destreza discursiva, a denúncia do terrível pesadelo que foi o fascismo português – que afinal existiu!

À beleza formal do discurso, Mário Lúcio Sousa acrescenta a agilidade conceptual da narrativa, o uso exemplar da língua, o conceptualismo épico do tempo diegético, o desenvolvimento da trama ficcional e o seu entrosamento com a verdade histórica, fazendo deste romance um dos títulos exemplares sobre o modo como esse período da nossa história comum, marcou de forma indelével todo um povo, mas sobretudo as gerações que o viveram.

Hoje é dia 29 de Outubro de 1936. 152 portugueses, incluindo 34 marujos revoltosos, um anarquista de nome Mário Castelhano, o Secretário-Geral do Partido Comunista, Bento Gonçalves, um imberbe de 17 anos chamado Edmundo Pedro, e eu, Pedro Santos Soares, acabamos de nos certificar de que estamos em África. Nem uma planta, nem uma cabra, nem um ser humano, nem um som.

Um livro indispensável, de leitura obrigatória nestes dias em que algumas forças do obscurantismo militante, andam por aí a tentar rescrever a História.

Mário Lúcio Sousa, O Diabo Foi Meu Padeiro. Edição D. Quixote/2019

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