“Viagem ao Sol” é composto por imagens de arquivo inéditas (fotografias e filmes domésticos), sobre as quais vamos escutando várias vozes. Trata-se de testemunhos daqueles que, em idade precoce, saíram da Áustria, para viver temporariamente no nosso país. Esta é uma polifonia sem necessidade de mostrar os rostos do presente. Tudo ganha força dramática na articulação entre as imagens do passado e o exercício de memória que fazem agora em adultos.
O país maquilhado que Salazar criou
No início de “Viagem ao Sol”, sobre imagens de destruição surgem relatos das consequências da guerra na Áustria: a fome, os incêndios, e o medo que os adultos passavam para os mais pequenos. Uma testemunha refere que era um mundo sem cor: vestiam-se de escuro, tudo era negro; só viu cores quando chegou a Portugal.
Estas crianças vinham convalescer da fraqueza para um país com sol, ameno e distante das feridas da guerra. Mas as guerras viviam-se noutros moldes por cá.
Os pais de acolhimento não as deixavam contactar com os criados; não lhes era permitido brincar com crianças pobres e analfabetas. A maioria delas, passou da luta pela sobrevivência no país de origem, para um conforto social e económico que escamoteava a realidade em quase todos os portugueses viviam.
Igreja e Estado estavam unidos nesta missão de “maquilhagem”, através da caridade.
Por exemplo, na viagem de vinda por mar, as crianças eram obrigadas a fazer uma procissão de velas, enquanto rezavam. Um dos apanágios salazaristas era a adoração a Fátima e à religião católica. São várias as fotografias de crianças agarradas a terços e bíblias, e até vestidas de anjo. Vemos o Santuário da Cova de Iria nos anos 40 do século XX, enquanto escutamos uma testemunha a falar da sua revolta contra as aparições. Se Nossa Senhora apareceu, por que é que não ensinou os pastores a ler e a escrever, e lhes pediu antes para rezar?, pergunta, em tom de desabafo.
Na folha de sala que acompanhou a ante-estreia do filme, na Cinemateca Portuguesa, os realizadores escrevem: “Habitualmente, colocadas à margem da história e na margem das imagens históricas, o olhar das crianças é, no entanto, poderoso e revelador. O que viram estas crianças? Como viveram o período de pós-conflito? Que nos diz esta experiência acerca dos dias de hoje?”São importantes os lastros que “Viagem ao Sol” deixa no espectador. Como é que hoje falamos sobre os traumas da guerra para as crianças que a viveram(vivem)? E, em relação a Portugal, que consequências pessoais e colectivas teve o trauma de vivermos quase meio século sob um regime opressor?
Contra o esquecimento dos valores da igualdade e liberdade
Estas pessoas guardam, maioritariamente, boas memórias dos tempos em que estiveram no nosso país. Apesar da sua tenra idade, percebiam que havia uma forte e injusta estratificação económica, e que viviam protegidas pela riqueza e ostentação das famílias de acolhimento, todas elas coniventes com a ditadura. Uma mulher conta como Salazar enviava todos os anos uma caixa de ananases para a sua família, e de como tinha de o visitar sempre que voltava a Portugal, ou partia para a Áustria. Outro testemunho lembra que as criadas não tinham descanso e raramente iam a casa; essa menina ensinou a cozinheira analfabeta a escrever o seu nome (na Áustria, conta, toda a gente sabia ler e escrever). Em Portugal, antes do 25 de Abril de 1974, uma boa parte da população era analfabeta. Não existia qualquer tipo de protecção social; muitas crianças eram obrigadas a trabalhar, para ajudar no sustento familiar.
“Viagem ao Sol” destaca-se pelo registo da memória como património imaterial e herança futura para as gerações mais novas. Para que a igualdade de direitos, a liberdade de expressão, e a melhoria das condições de vida do povo não caíam no esquecimento com o passar dos anos.