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A Omissão da Família Coleman: sobrevivência, alegria ou o fim da união

Entre 27 de Abril e 27 de Maio, os Artistas Unidos levaram a palco “A Omissão da Família Coleman”, peça do dramaturgo argentino Claudio Tolcachir, escrita em 2005.

foto: Jorge Gonçalves

A Omissão da Família Coleman: sobrevivência, alegria ou o fim da união

O primeiro impacto é o cenário. Uma enorme estrutura de andaimes trabalha a verticalidade espacial: no rés-do-chão está a cozinha, em cima a casa de banho e no topo a divisão onde Gabriela (Nídia Roque) costura. À esquerda do palco, uma divisão escura indica a porta, cuja campainha não funciona, mas um espanta-espíritos dá a entrada das personagens em cena. Os sofás em primeiro plano completam a casa, que, pela arquitectura, ajuda a caracterizar o modo de funcionamento de quem a habita. 

Da família Coleman fazem parte a avó (Antónia Terrinha), a mãe (Ana Castro) e quatro filhos. Gabriela e Damien (Nuno Gonçalo Rodrigues); Mário (Vicente Wallenstein) e Verónica (Raquel Montenegro). Esta última é a única que não vive na casa. 

Os peculiares Coleman

Entramos de rompante na rotina familiar: um discurso de humor negro sobre corpos e mortes; Damien está mal-disposto (algo lhe aconteceu na noite anterior); Gabriela sai para ir lavar roupa fora de casa, a máquina de lavar avariou. Leva a sua roupa, as meias de Mário e a roupa da avó. A mãe perde-se à procura das suas peças sujas, e a filha parte. Mário parece uma criança: esconde os fósforos que a mãe precisa; a mãe parece uma criança: senta-se e esquece-se de que ia preparar o pequeno-almoço. Falam de Verónica, que tem vida própria, marido e dois filhos. É a figura de quem todos precisam, por questões económicas, e com quem têm uma relação distante e de veneração. Existe um fosso entre Verónica e a restante família. Os Coleman sobrevivem no seu peculiar ecossistema doméstico. Verónica não se quer misturar, nunca deu a conhecer filhos e marido à família de origem. Tudo o que diz e o modo como que faz o que tem a fazer pelos outros revelam que tem vergonha das origens. 

A dramaturgia é complexa, as movimentações das personagens constantes. Verónica apenas mostra afecto pela avó, a quem dá dinheiro; dinheiro esse que é depois repartido entre todos. Damien é o mais ambíguo, mas o seu comportamento indicia que vive entre roubos e alguma dependência. É o mais revoltado, sobretudo contra a arrogância de Verónica. Oferece um relógio de ouro à avó, que acaba por ter de levar no final, quando foge.  

Quando os pequenos conflitos se agudizam, reparamos na avó sentada, a olhar para o tecto. A mãe imita-a, mas no tecto não está nada. A avó teve um ataque: perante a emergência, atordoados, arrumam o que podem para levar a avó na ambulância, que a mãe pede que seja grande, para nela caberem todos… 

O que acima de tudo os caracteriza, dentro dessa vida no fio da navalha, é a união. Assim acreditamos quando termina a primeira parte, e as luzes vão diminuindo enquanto cantam os parabéns à avó (depois de referirem a data de nascimento ao telefone perceberam que era o aniversário dela). 

Da união à separação: o que é uma família?

Na segunda parte, a dramaturgia e o espaço são outros. A narrativa daquelas vidas mudou. O lado direito do palco passa a ser o centro. Um quarto de hospital, cuja limpeza e a brancura se diferenciam da cor, objectos e arquitectura da casa Coleman. A avó está na cama, Veronica trata dela. Existe calor e afectos nestes Coleman: sentimo-lo quando entram de rompante, e ali se instalam. Sem gás em casa, arranjam a solução de, às escondidas, tomarem banho no quarto. Os Coleman encontram maneiras surpreendentes e criativas para lidar com as adversidades quotidianas. Estes são os Coleman. Verónica nada pode fazer contra o caos familiar; está consciente do seu afastamento e do gesto deliberado de ter a sua própria família. Quando, finalmente, vai dar a conhecer os filhos à avó, a confusão aumenta: todos querem conhecer as crianças; a mãe fere Mário sem querer; a avó tem de fazer mais exames; descobre-se que Mário está gravemente doente. Este encadeado dramático é consequência da instabilidade dos Coleman. 

Por desespero, a mãe faz chantagem com Verónica para ir viver com ela. Por desespero, Damien desaparece levando a carteira de Verónica e o dinheiro que Gabriela e o motorista (Hélder Bráz) desta lhe dão. É por amor desesperado e sincero que estes se juntam, e Gabriela vai viver para casa dele. A avó morre. Era ela que unia a família. Em casa, Mário espera que os outros apareçam; não sabe que está doente. Ninguém vem: destinos opostos dissolveram a periclitante estrutura familiar dos Coleman. Afinal o que os unia era ténue. Mário acende um fósforo da caixa que escondera. Ficamos com ele e com a projecção da sombra da avó na janela da entrada. Qual a omissão dos Coleman? Provavelmente, a capacidade para lidar com um mundo assustador, que dá pouco espaço aos que vivem de esquemas, na margem e que têm ainda um coração. A máquina é imparável. Apesar das perdas, é preciso continuar… mas como ser equilibrado e funcional?

Restam as últimas notas. Para os actores: sem eles seria impossível assistir a esta corrente dramatúrgica; uma equilibrada orquestração de idades e experiências; representações de excelência. Para a construção e montagem de um cenário pormenorizado, inventivo e engenhoso (a cargo de Francisco Silva). E uma maravilhosa encenação, como nos tem vindo a habituar Pedro Carraca.  

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