Alicia Alonso (1920-2019)

Alicia-Ernestina, tão pequenina, quer ser bailarina. Rodopia ao som dos discos da mãe, caminha em bicos de pés, move-se como Isadora Duncan, não sabia o que era dançar. Nos anos 20 do ido século, a dança foi desejo de menina, primeiros passos na Escuela de Sociedad Pro-Arte Musical de Havana. Não tem o corpo ideal, mas tem a extensão, o golpe e a força. É isto que quero fazer o resto da vida. Alicia-Bela-Adormecida sobe ao palco pela primeira vez. A ternura dos 16 traz-lhe Fernando, a dança foi amor. Voam para Nova Iorque e Alicia-mãe traz Laura ao mundo. A vida é difícil na ruidosa grande-maçã, é preciso trabalho e ousadia. Alicia-coragem estreia-se na comédia musical, mas continua o treino clássico. Como uma esponja, estuda com L. Fokine, A. Fedorova, E. Zanfretta, A. Vilzak na School of American Ballet

Alicia-mulher, mundo todo nos braços e pernas, vontade férrea na ponta dos pés, junta-se ao recém-criado Ballet Theatre. O treino físico é implacável. Só tem 20 anos e falham-lhe os olhos com tanto para ver, as cirurgias golpeiam-lhe a vida. Alicia-dor aponta e estica os dedos, desorientada. Danço na minha cabeça. Vésperas de estreia, a vedeta adoece, é preciso alguém para o grande papel. A oportunidade é agora, a dança foi sacrifício. Imobilizada e de olhos enfaixados, ensinei-me a dançar Giselle. Alicia-resistência pára tratamentos, não há vida fora do palco. Volta aos ensaios, em sete dias transformada, pés em sangue, fogo no coração. Os olhos só vêem sombras, mas a técnica permite-lhe dominar o espaço, guiada por pontos de luz. Alicia-Giselle conquista público e crítica. Às cegas é Carmen, Aurora, Clara, Odette/ Odile, Julieta, tantas outras. É a grande ballerina dramática, intérprete maior do reportório clássico e romântico. Dança Giselle até 1948. 

Diz-se em Cuba que Alicia nasceu para que Giselle nunca morra. A dança foi o sonho de regressar, criar uma escola na terra natal, onde não existem ainda companhias profissionais. Funda com Fernando o Ballet Alicia Alonso e procura bailarinos entre os conterrâneos. Alicia-coreógrafa dirige as primeiras peças. A companhia faz a primeira viagem pela América Latina. Em 1956 a situação política deteriora-se e a ditadura de Fulgencio Batista retira-lhe apoio económico. Alicia protesta, recusa-se a dançar na ilha. Leva consigo alguns dos mais promissores bailarinos, para que não definhem neste período. Em plena Guerra Fria, Alicia-estrela recebe convite para actuar na União Soviética, o primeiro dirigido a uma bailarina do hemisfério ocidental. Dança em Moscovo, Leningrado e Kiev, nas famosas companhias Bolshoi e Kirov. Aos 40 anos, ainda gira os 32 fouettés do Cisne Negro. É reconhecida como prima ballerina assoluta, a única latino-americana na história. 

Em 1959, a dança foi revolução. Fidel financia as estruturas culturais enfraquecidas e a companhia converte-se no Ballet Nacional de Cuba. Actuam pela América Latina como embaixada do governo revolucionário. Nos campos e ruas, Alicia-professora procura meninos que queiram dançar, aspiração que não pode ser negada a nenhuma criança. A sua linguagem coreográfica desponta: É este o ballet cubano – um ballet quente, diferente de todos e a todos acessível, submerso no pensamento de Cuba e na sua forma de sentir. Uma combinação de um virtuosismo conciso e formalista com a doce sensualidade que os cubanos têm no sangue. Um estilo expressivo, latino e voluptuoso, prontamente reconhecível. Alicia-orgulho apresenta o Ballet Nacional  em mais de 60 países, recebe prémios e distinções, multiplica as suas criações coreográficas, segue a dançar nas mais prestigiadas companhias do mundo. O seu compromisso político impede-a de actuar nos Estados Unidos até 1971. Só aos 74 anos, na apresentação de Farfalla, paira para longe do palco a bailarina que por mais tempo o sobrevoou. Alicia-brilhante, linda no seu turbante e batom vermelho, ensina e coreografa até ao fim, treinando gerações de bailarinos, criando estrelas na terra de bravura e heroísmo que, como à dança, tanto amou. Lugar onde um dia, disse, plantou uma árvore, de bons frutos porque a terra é boa. É este o seu legado, não apenas para Cuba, mas, espero, para o mundo. E foi assim que aconteceu, Alicia-lenda venceu a morte. 

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