João Aguardela, músico, teria feito 50 anos no passado dia 2 de fevereiro, se um cancro não o tivesse roubado demasiado cedo à nossa companhia. Conheci-o na televisão.
No início dos anos 90, as bandas portuguesas tocavam ao vivo na televisão e eu lembro-me de ter visto os Sitiados, a sua banda, a ‘escangalhar’ o estúdio de um lado para o outro a tocar a “Vida de Marinheiro”. A Sandra, de acordeão ao peito, ele com os seus longos cabelos, lindo, cantava energicamente. Segui-os nos anos seguintes por esse país fora, em muitos palcos, sedenta daquela energia nova que contagiava a música portuguesa.
De repente, já não era vergonha gostar de fado, gostar de folclore, ali estavam eles a trazer multidões a vibrar com a nossa música tradicional, bastando tocá-la com aquela atitude tão deles. Nessas andanças, o destino levou-os à A Voz do Operário por duas vezes. Na gravação do vídeoclipe da canção “Outro Parvo no Meu Lugar”, parcialmente gravada no Salão, e ainda numa outra actuação dos Sitiados.
Mais tarde, o João fartou-se das multidões e de não poder andar na rua sem ser reconhecido, coisa que nunca o moveu, e entrou com o mesmo amor que tinha à música portuguesa no universo ainda tão desconhecido da música experimental.
Nasceu o projeto Megafone, que mais uma vez desarranjava recolhas tradicionais, suas ou do Giacometti, para nos devolver aquele trabalho de mistura, tão nosso e tão atual, muito pouco compreendido para a época. Conheci-o pessoalmente nessa fase, quando me juntei a ele e ao Luis Varatojo para gravarmos o primeiro disco da Naifa. Foi aí que conheci o homem por trás das carismáticas actuações ao vivo. Efectivamente, carisma não lhe faltava, em cada gesto quotidiano.
O João acreditava em tudo o que fazia, era dono de uma fé inabalável no património cultural, e de como este poderia ser mexido e remexido, usado para qualquer demonstração cultural. Irritava-se com quem queria fechar a cultura numa redoma, separando-a da vida, das pessoas. Gostava particularmente, e isso ficou bem visível no trabalho da Naifa, de pegar em várias estéticas e misturá-las: o primeiro disco tinha na capa uma pintura de Amadeu de Souza Cardoso, todas as letras eram de jovens poetas portugueses, e a música ousava de tudo, desde o uso de uma pedaleria na guitarra portuguesa à bateria a marcar ritmos folclóricos, ao mesmo tempo que se visitava o grunge ou o punk nas suas tão características linhas de baixo.
Dono de um irónico sentido de humor, ainda enganou a banda toda no último álbum que gravou. Escreveu todas as letras sob o pseudónimo da sua avó paterna, entregou-as à banda, e disse que eram de uma rapariga que vivia fora do país. Só descobrimos que eram de sua autoria depois de falecer.
O João não era de meias medidas. Ou amava ou odiava. Ou era amigo ou inimigo. Viveu sempre para as suas convicções e acima de tudo, para a música e para a cultura popular.
Todas as homenagens que lhe forem feitas serão poucas, para o tanto que nos deixou, e pelas portas que abriu ao trabalho e à criatividade dos artistas mais novos.
Faz-me falta todos os dias o João. Faz falta ao país o João.