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“O Corredor”: o rapaz que corre, grita e sonha a caminho da liberdade

“O Corredor”, de 1984, volta a convocar um desses miúdos. A sua vida é solitária, mas cheia de esperança. Os adultos parecem já demasiado abatidos pelas dificuldades de um mundo duro e implacável. O filme do realizador Amir Naderi integrou o longo ciclo de cinema que a Cinemateca dedicou ao cinema do Irão, consolidando autores como Kiarostami, Jafar Panahi e Asghar Farhadi e revelando nomes e obras de cineastas menos conhecidos, que aprofundam o olhar acutilante, crítico sobre a sociedade.

A narrativa de “O Corredor”, com pequenas variações, podia ser transportada para um país que tivemos, sobretudo antes da revolução de Abril. Amiro, o protagonista, é órfão e toma conta de si mesmo. Desconhecemos a sua idade; é um entre tantos rapazes que foram abandonados ou saíram de casa, e que, como ele, tentam sobreviver numa localidade portuária, onde existe uma pequena base aérea. Se a família não conseguiu proteger miúdos como Amiro, o Estado também não o fez.

Amiro nunca desiste. Existe em si um lado de fantasia, alegria e sonho que lhe permite afirmar-se perante as dificuldades da vida, nunca se rendendo à sobrevivência como existência humana.

Amiro grita quando o filme começa: “levem-me!”; corre e nunca se cansa de correr, mesmo quando as suas forças são mínimas. Do outro lado, está um oceano de possibilidades; do outro lado estão (na horizontalidade do plano) tantos navios que o podiam levar para outro lugar. Amiro quer mais do que aquilo que é o quotidiano: vê os pequenos aeroplanos que sobrevoam o céu, e passa a observá-los e gasta o dinheiro que tem em revistas sobre avião.

Numa das vezes em que vai comprar revistas percebe que ler é importante. “Os rapazes da tua idade já sabem todos ler”, diz-lhe o dono do quiosque. Amiro responde que comprar as revistas por causa das imagens. Mas não se esquece do que ouviu… decide ir aprender a ler.

A sua luta é também uma revolta interior inconformada: Amiro vai para as rochas e grita. Grita contra o que lhe falta: Eu tenho de ler, eu tenho de aprender. Rasga as revistas que lhe custam muito dinheiro, e que é resultado dos vários esforços e esquemas de trabalho que Amiro inventa ao longo dos seus dias.

Portugal: Os “miúdos” que deixavam de ser crianças antes do 25 de Abril

Quantos miúdos em Portugal não tinham também de lutar pela sobrevivência, antes do 25 de Abril? Crianças que cedo foram trabalhar, crianças que deixar de brincar nas ruas e ir à escola para ajudar em casa, ou apenas para se ajudarem a si mesmas… Não foi assim há tanto tempo que Portugal foi um país com um nível elevado de analfabetos e com um baixo nível de literacia. Estudar, aprender, tempo para brincar era um luxo. Se existiram conquistas em Abril elas estão à vista – apesar de tanto termos ainda por que lutar e caminhar.

A este propósito basta recordar, por exemplo, a luta das pessoas espelhadas em obras como as de Alves Redol. Ou, como (sobre)viviam as pessoas em “Levantados do Chão”, de José Saramago.

As desigualdades e injustiças sociais e económicas, a falta de acesso à cultura e outros bens continua. O 25 de Abril de 1974 veio lembrar que estamos todos debaixo do mesmo céu, todos a viver de braços estendidos à Humanidade. Ou pelo menos assim devia ser.

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