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De Losey a Matos Silva: as feridas da guerra e a coragem do desertor

A Cinemateca Portuguesa apresentou, em Janeiro, uma retrospectiva do realizador Fernando Matos Silva. Juntamente com os trabalhos que fez para cinema e televisão, passaram filmes portugueses e internacionais que marcaram o percurso do cineasta. Destaco o dia da programação em que apresentou “King and Country” (1964), de Joseph Losey, e, mais tarde, “Actos dos Feitos da Guiné” (1980), da sua autoria. Ambas as obras têm como tema a guerra e as suas consequências. 

Matos Silva viu o filme de Losey em Londres, quando estudava cinema. “King and Country” foi alvo de boicote e tentativas de proibição na estreia. Losey, vítima do macarthismo, tinha fugido para Inglaterra, onde continuou a fazer filmes que punham o dedo em várias feridas da humanidade. Em “King and Country”, um jovem soldado, Hamp (Tom Courtenay), tem de responder pela sua deserção. Estamos na I Guerra Mundial, e os desertores são alvo de um julgamento militar feito no terreno pelos superiores. A condenação, mais do que certa, é a execução. Os desertores são traidores à pátria, mesmo que simbólica e pessoalmente esse seja um acto de coragem e afirmação de uma posição de paz. Hamp tem direito a um advogado, o capitão Hargreaves (Dirk Bogarde), que lhe faz perguntas sobre a evasão. Vamos percebendo que o soldado só queria ir para casa, depois de três anos na guerra. Não consegue continuar a combater. Todos os companheiros de pelotão morreram. Hargreaves conclui que Hamp está traumatizado. O médico do pelotão nunca o quis tratar devidamente. Durante o julgamento, os seus compatriotas, intolerantes em relação aos seus motivos, vêem-nos sempre um criminoso. Hamp mantém-se sereno e firme. É o mais humano de todos: não quer continuar na violência e dureza letais da guerra. No momento do fuzilamento, os carrascos disparam, mas Hamp resiste. Hargreaves, que sempre discordou com aquela barbárie, aproxima-se e pergunta-lhe: “Ainda não acabou?” Questão que reverbera noutras. Ainda não acabou o sofrimento; ainda não acabou a crueldade; ainda não acabou a guerra? É preciso matar um homem pacifista, que se pôs a caminho da sua terra, para dar o exemplo a outros que, acima de tudo, têm de defender o rei e a pátria? “King and Country” tem 60 anos, e é, em parte, um espelho do que se passa hoje na sociedade. Não é apenas nos campos de batalha que a paz é ignorada. Também à nossa volta, por vezes, nos esquecemos dela. 

As duras notícias da guerra colonial

Nunca até à estreia, em 1980, de “Actos dos Feitos da Guiné” se tinham dado notícias tão directas da guerra colonial. Matos Silva foca-se no que aconteceu em Guiné-Bissau, para onde foi destacado entre 1969 e 70. Filma Bolama, aquando da sua chegada, e, simultaneamente, recolhe imagens de arquivo do que se passava no terreno bélico. E o que se passava era terrível. Vemos soldados portugueses perdidos e aterrorizados, disparando contra o inimigo. Vemos o suposto inimigo, o povo guineense, aterrorizado. Como se os dois lados do conflito não encontrassem razões para combater e perpetuar a guerra. Deparamo-nos com as consequências para os portugueses, que morrem (à distância escutamos o último suspiro de um jovem) ou ficam brutalmente feridos. Deparamo-nos com as consequências para os guineenses: são muitos os feridos e mutilados pela bomba de Napalm. 

Estas imagens documentais alternam com momentos de ficção. São várias as personagens que os actores José Gomes e Virgílio Massinge vão interpretando, para contar a história da Guiné-Bissau: uma história de colonização, e da luta pela libertação. São ainda lidos textos da época, da luta resistente dos guineenses pela independência; escutamos um narrador que dá conta da sua chegada àquele território; e vemos excertos de uma entrevista a Amílcar Cabral. “Actos dos Feitos da Guiné” é um filme ímpar no cinema português, infelizmente pouco divulgado, que coloca o dedo na grande ferida por sarar da guerra colonial.

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