Voz

Jornal

A Voz que inflama faz 144 anos

Jornal foi fundado por operário tabaqueiros, na maioria analfabetos.

Ilustração de Patrícia Guimarães

A 11 de outubro de 1879, nascia o jornal a Voz do Operário. Era mais do que um jornal, era uma expressão de revolta dos Operários Tabaqueiros pelo silenciamento das suas degradadas condições de vida nas fábricas de Xabregas, Santa Apolónia e Santa Justa, mas também de combate ao alheamento da imprensa face a uma realidade de violenta exploração dos trabalhadores. O jornal era uma centelha que os operários tabaqueiros ateavam ao mundo do trabalho, inspirados pela recém-proclamada Comuna de Paris, mas também pelo Manifesto do Partido Comunista, escrito por Karl Marx e Friedrich Engels, dado a conhecer ao Mundo em 1848.

A ideia de um jornal operário, citando o Livro que assinala as comemorações dos 135 anos da instituição, nasce, em agosto de 1879, num desabafo do trabalhador de uma fábrica de tabacos de Lisboa e membro da direção da Associação dos Manipuladores de Tabaco, Custódio Gomes. Reunidos numa pausa de almoço, Custódio Gomes lamenta: “Soubesse eu escrever, que não estava com demoras, já há muito que tínhamos jornal”, prometendo que, no dia seguinte, na Assembleia da Associação, no n.º 3 do Beco dos Fróis (atual Rua Norberto Araújo) iria propor a publicação de um periódico.

A promessa foi cumprida, e coube ao presidente da Assembleia Geral da Associação, Custódio Braz Pacheco a apresentação formal da proposta, uma publicação “exclusivamente dedicada às batalhas laborais e à emancipação dos trabalhadores” para que não mais fosse preciso mendigar espaço noticioso na imprensa generalista.

Três meses depois, nasceu o A Voz do Operário, cuja missão, citando o editorial do primeiro número do jornal, assinado por Custódio Bráz Pacheco, seria “pugnar denodadamente pelos interesses materiais e morais da classe que representa; concorrer, quanto possível, para a educação e moral da classe operária e instrução do povo, defender os que sofrerem injustiças (…) e mostrar claramente a esses que se julgam senhores de roça que o homem, por ser operário, não é escravo, e como tal não deve ser tratado”.

Citando o Livro dos 135 anos, Alberto Franco refere: “A imprensa generalista divulgou o aparecimento d’ A Voz do Operário”, mas a saudação ao novo semanário que podia ser adquirida em vários pontos da cidade por 10 reis, era completamente embrulhada numa miríade de notícias e fait divers.

A condição vivida pelos trabalhadores do tabaco era miserável. Citando Borges Coelho, que prefaciou o livro de Alberto Franco, “os tabaqueiros eram os ‘escravos brancos.’ Nas fábricas de Xabregas, de Santa Apolónia, de Santa Justa moíam a folha de tabaco em pisões cujo manejo levantava um ruído ‘infernal’ e nuvens de pó faziam sangrar os olhos dos trabalhadores, homens e mulheres, rapazes de 16 anos e meninas de 12, permitida pela Lei (..) num horário que se prolongava por 14, 15 horas diárias”.

Ao longo da sua longa existência, o jornal foi refletindo, nas suas páginas, a realidade social de uma população trabalhadora, mas também a transformação que a luta política, sindical produzia. A instituição que nasceu como solução para sustentar o jornal, e acabou por passar a ter uma função social incontornável.

Se o jornal e a instituição receberam com entusiasmo a implantação da República, em 1911, “ultrapassado o estado de graça”, o jornal não se desviaria das suas origens lamentando “o agravamento da situação económica do operariado” e lembrando “ao Executivo as promessas feitas aos trabalhadores e o muito que ainda faltava cumprir”.

Citando um artigo do gabinete de estudos olissiponenses, o jornal, cuja publicação no seu início chegou a estar suspensa por alguns das colaborações não serem obra de trabalhadores manipuladores de tabaco, “acabaria por abrir espaço aos trabalhadores de outros setores” e a instituição, em 1925, que distinguia desde o início “a divisão entre sócios efetivos, os tabaqueiros, e sócios auxiliares pertencentes a outros grupos socioprofissionais – que só podiam participar nas assembleias, mas sem direito de voto nas decisões a tomar – foi ultrapassada em 1925 com a anulação dessa distinção”. Para se perceber a importância da instituição, em 1924 tinha 63590 sócios.

O legado que o movimento sindical unitário deve prosseguir

E é este o legado a que se refere hoje, 144 anos depois, José Ernesto Cartaxo, um dos fundadores da Intersindical: “Seria redutor cingirmo-nos aos inúmeros plenários, assembleias ou reuniões que ali ocorreram e que estiveram na génese de vários sindicatos, designadamente dos quatro que estiveram na origem da constituição da Intersindical. Na Voz do Operário estão as raízes da história do movimento operário português. Há uma dívida de gratidão do movimento sindical para com o contributo dado pelo jornal Voz do Operário, pela instituição e pela luta dos trabalhadores do tabaco. O Movimento sindical unitário é herdeiro e tem a obrigação de dar continuidade a este legado”, conclui.

Também Manuel Candeias, histórico dirigente sindical da direção do Sindicatos dos Metalúrgicos eleita democraticamente em 1969 aplaude a ideia de que a Voz do Operário foi sempre uma referência para os trabalhadores e para o movimento sindical, que foi o lugar onde se realizaram as várias reuniões entre sindicatos que deu origem à Intersindical, mas que foi sempre muito mais do que isso.

“Era da direção da lista à direção do Sindicato dos Metalúrgicos de António Santos Júnior, Carlos Alves, Gameiro e Faustino”. A lista da oposição ganharia com 1200 votos contra 11 da lista do regime. “Nem sequer todos os membros da lista A votaram na sua própria lista”, recorda com ironia Candeias. Esta primeira direção de um sindicato democraticamente eleita começa o processo de negociação pela Acordo Coletivo de Trabalho da TAP e é na Voz do Operário que muitos dos plenários se irão realizar, o primeiro dos quais a 11 de abril e “todos sempre muito concorridos”, refere o sindicalista. A 11 de julho é convocada outra reunião geral que é proibida pelo Governo Civil de Lisboa. A descrição no Livro Branco da comissão sindical refere que fora do edifício da Voz do Operário “era um mar de gente” que foram vítimas da brutal carga policial.

Também na noite de 11 de julho de 1973, a Pide irrompeu pelo Salão da Voz do Operário e interrompeu o Plenário da Comissão Sindical que discutia melhores condições para os trabalhadores da TAP. A reunião era interrompida, mas ali ficaria apalavrada entre os presentes que no dia seguinte haveria uma manifestação no aeroporto. E no dia seguinte, os trabalhadores manifestaram-se mesmo, apesar da carga policial violenta que invadiu o aeroporto. “Nesta altura não estava lá porque estava preso em Peniche”, recorda Manuel Candeias. Estes são apenas alguns dos muitos momentos que provam a “relação umbilical” entre a Voz do Operário e o movimento sindical, mas também todo o movimento social, e político, diz José Ernesto Cartaxo.

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