Voz

Laranjeiro

A escola onde o tamanho do pé não determina a passada

No Laranjeiro há uma escola de portais para outra dimensão e onde a cultura não divide, antes enriquece toda a comunidade educativa.

Mais uns dias e tínhamos presenciado a solenidade da inauguração de uma biblioteca na escola d’A Voz do Operário do Laranjeiro, mesmo ao lado da secretaria. E, a biblioteca é como uma semente que se lança na terra fértil, só se pode esperar bons resultados. E, por falar em sementes, esta escola, encaixada entre prédios de um bairro do Laranjeiro, parece uma porta para uma outra dimensão. Não nos prendamos com considerações da física para explicar esta outra dimensão, porque ela explica-se facilmente, neste caso, claro.

Vejamos como, apesar do espaço exíguo de uma sala, dois metros quadrados apenas, podemos colocar um conjunto de livros, cada um com alguns centímetros quadrados. Até agora não saímos das três dimensões, mas quando abrimos a curiosidade pela leitura abrimos essa porta para uma quarta dimensão, o tempo. Essoutra dimensão, quebra ampulhetas, acelera ou retarda o tic-tac dos relógios, substituindo todo aquele mecanismo de cordas e rodas dentadas pelo prazeroso momento da leitura que nos abre agora uma outra dimensão, mais uma, que nos permite vaguear pelo mundo, sem limites de espaço, a não ser o da nossa própria imaginação, potenciada pelos cenários, histórias, enredos e personagens sugeridos. Ora, aí está, como num quarto com dois metros quadrados a pequenada pode viajar.

Consideremos então que a biblioteca, que abriu uns dias depois da nossa visita, é apenas um dos muitos portais com que nos fomos cruzando nesta visita guiada pela educadora Olga, sempre muito bem assessorada por um par de alunos, de que o Ivan, a Maria, a Matilde a Catarina e o Samuel são apenas alguns bons representantes desta população infantil bem treinada nessas viagens pelos portais que a equipa docente, não docente e demais comunidade educativa lhes vai abrindo.

Uns dias antes da nossa visita, a mãe da jovem Zafia, a Faiza, da Associação Casa Árabe, alimentou a curiosidade da equipa docente. Sim, porque a curiosidade é sempre diretamente proporcional ao saber. E, assim, perante uma comunidade cada vez mais multicultural, talvez não seja pior lançar, também aqui, a tal semente desta vez da interculturalidade. E assim foi, a Faiza lá foi explicar um pouco dos hábitos desta cultura cada vez mais presente entre esta comunidade educativa. A curiosidade é o apetite, o conhecimento não pesa e a conversa é como as cerejas. Para além do conhecimento sobre as razões dos hábitos culturais desta comunidade, seja a parte gastronómica, religiosa e outras, a curiosidade deslizou para a língua e sobretudo para a escrita. E assim, alguns dos participantes deste encontro ficaram a saber também como escreviam em árabe o seu nome. A escola d’A Voz do Operário abria mais esse portal da interculturalidade que elimina a barreira mais terrível gerada pela ignorância e o medo da diferença.

Voltemos ao hall de entrada, onde largas e luminosas janelas substituem a opacidade da parede, e por lá continuam a Maria, a Catarina, o Samuel, a Matilde e o Ivan de nariz esborrachado no vidro tentando explicar a origem de um espantalho com o nome de “Palhaço Sem Cuecas”. Ao lado do Palhaço Sem Cuecas, assim é conhecido pelos petizes, cresce a couve portuguesa, as alfaces, as ervas aromáticas e, num cantinho, a batata-doce. O debate entre o Samuel e o Ivan prende-se com o autor do nome dado ao espantalho e, aí, as opiniões divergem: – Fui eu! Não, fui eu! Esta paternidade é irrelevante – explica a professora Olga, pondo um ponto final no diferendo e centrando a discussão na paternidade da horta. Ora, aí não há dúvidas, o consenso é total e ambos repetem o nome de Inês em uníssono. A Inês faz apoio domiciliário, outro dos braços com que esta escola envolve aquela comunidade. Só que a Inês traz consigo a cultura, muito provavelmente, adquirida noutras paragens e, concluem os pequenos, percebe de hortas como ninguém. Quando, como e o que deve plantar. Não é coisa de menor importância e ganha assim a autoridade, não a que resulta de uma qualquer hierarquia, não a adquirida em palestras e workshops de liderança. Não, trata-se tão só do respeito pela hierarquia do saber.

Na verdade, a couve portuguesa está quase pronta para a panela e, não fora a cozinha estar em momento de mudanças e de obras, que vão transformar a velha numa moderna cozinha, a tronchuda teria já guardado um cantinho da panela e outro na barriga da pequenada, 130 mais dos 25 docentes e demais funcionários. Mas uma horta é mais do que isso para as crianças d’A Voz do Operário do Laranjeiro.

Saltemos agora para outro daqueles portais de que falámos. Numa dos espaços do hall, à esquerda, em frente à secretaria, há uma pequena e organizada exposição de roupa. Apesar da variedade de cores e de tamanhos a roupa está arrumada, diria até, devidamente organizada. Quisemos saber do que se trata. Olga explica-nos. Há ali, um mercado livre de roupa. Talvez mercado seja uma palavra indevidamente aplicada porque aquela não é mercantilizável. Aquela comunidade educativa deixa ali roupa que deixou de servir a si e aos seus, levanta o que ali estiver que lhes seja útil. A coisa é organizada todos os dias. Ora neste local de troca, ao contrário do mercado tradicional, não há quem compre e quem venda, não há moeda na troca, apenas a utilidade da roupa para quem dela necessite e ou deixa de necessitar. E esta ideia encerra vários conceitos de uma sociedade democrática e verdadeiramente sustentável, que combate de uma forma direta a velha e cada vez mais desigual sociedade de consumo que divide, mesmo em tenra idade.

Os espaços exteriores com árvores, equipamentos de lazer rodeiam as salas interligadas através destes espaços. A manhã luminosa convida a que as crianças troquem a sala pelo espaço exterior. E, a brincadeira, como diz o professor Carlos Neto, é um bom sinal porque “significa ser ativo, deslocar o corpo, mexer nos objetos, estabelecer a relação com a natureza” promovendo o “desenvolvimento sensorial, percetivo, motor, cognitivo, social e emocional”. Ora que aula esta pode ser desperdiçada? O que revelam as crianças da creche da Escola d’A Voz do Operário do Laranjeiro é essa maturidade. A bola é chutada ou lançada à mão num jogo que põe à prova qualidades no desempenho de competências motoras que nos espantam.

Ao lado, na sala do berçário, os petizes gatinham, alguns já ensaiam os primeiros passos. Não tarda, confessa a educadora, alguns dos miúdos estão prontos para transitar para o patamar seguinte. Ao contrário de outras escolas, as portas estão sempre franqueadas aos pais e crianças que às vezes acompanham as brincadeiras dos filhos no espaço exterior.

Os muros deste mundo onde a pequenada se vai ausentando da realidade para mais tarde a compreender melhor, não são verdadeiramente intransponíveis, garante-nos Olga, a Coordenadora Técnica Pedagógica deste espaço educativo. Depois adas aulas os espaços exteriores não se fecham à comunidade e isso é também uma forma de a servir.

Pela consulta dos mapas afixados na parede do hall ficamos a saber que esta semana é a equipa vermelha responsável pelas tarefas, a última das quais, mas não a menos importante, é a responsabilidade de ajudar a resolver problemas. Mas todas as outras equipas, a azul e a verde, têm a sua semana destinada. Mais ao lado, um outro gráfico revela uma estatística com base do tamanho dos pés dos pequenos da sala 1. Ficamos a saber que o pé mais pequeno é o do Rodrigo, que calça um 23, e que o pé maior é o da Elisianne, que calça um 33,5. Mas, a maioria calça o 26 e o 27. Ora aí está uma escola onde o tamanho do pé não determina a passada.

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